“Sei que muita coisa que eu fiz eu
não quis
Sei de muita coisa que eu quis que eu não fiz”.
Sei de muita coisa que eu quis que eu não fiz”.
Marcos Valle,
“Vinte e seis anos de vida normal”.
Se soubesse que tudo ia acabar assim, teria sumido
há mais tempo. Será que me acham logo? Um trago forte no cigarro se vai;
interior se faz paisagem, campos brilhando em verde, sol, margaridas e
dentes-de-leão. Melissa, a menina do papai, nem de longe é mais menina. Cedo ou
tarde vão me encontrar. A mãe dela deve estar aflita, afoita, Melzinha do céu,
onde é que você tá? Por que não perguntou antes, mãe? Aqui é minha nova família.
É muito fácil achar que isso é rito de passagem. Passagem de quê?
Existem crianças assim, tão velhas? Pois saibam que a Melissa não é criança só
por que deixou de trabalhar, ela bem sabe que o preço é alto por sobrevoar as
pedras e buscar vôos cada vez mais amplos. Moça, por favor, não pode fumar
aqui. Demorou pra alguém me encher o saco. No que atirei os restos e cinzas
pela janela, a estrada se fez mais lerda. Caralho! A Mel é moça sem sorte
mesmo, nem no início de nova jornada com seu rebento ela tem sorte. O ônibus no
acostamento; todos descendo pra quem sabe um pouco de ar.
Desci um pequeno morro de beleza rasteira, um ou
outro espinho de planta chata picando as panturrilhas, nada perante outras
picadas já levadas. Nem sinto dor. Ali sim era possível um cigarro; tremendo um
pouco – nervosismo, vou ser pega? Olhando o belo corpo de três meses,
desnorteio e deixo cair o maço. E a Mel despenca quando ao se abaixar pra
recolher, sente o pólen das margaridas beijando seu nariz.
E deitada entre as flores sinto o corpo formigar,
olho o sol com olhos bem apertados, dia seco e sem vento me lembrando que nada
é pra sempre. Minha fuga, até quando? E ela ouve a voz da mãe e do pai em
línguas de choro, Mel, Melissa, cadê você, minha filha?! Tem abelhas zanzando
por aqui. Elas se balançam indiferentes, eu posso ver, mesmo deitada. Duas aqui
perto do meu punho, circulando uma margarida, nem sei se vagarosas ou velozes,
dançam. É um chamado, não? Elas trabalham felizes, mas como ter certeza da
felicidade sem sorriso? A Mel sempre sorria, mas não sabia que ela era tão
infeliz, deve estar chorando a minha mãe. Sinto um espirro entalando aqui, por
dentro do nariz. As abelhas. Mãe, você queria que eu fosse uma abelha, né?
Operária, humilde, cuidando de flor, zangão e rainha, um mel de mulher? A
Melzinha não conseguiu, prendeu-se cedo, amadureceu tarde – isso se amadureceu.
A Mel quer ser abelha pra quê? Talvez repare algo, talvez conforte mais que as
picadas que levei; elas não parecem reclamar, ainda por cima dançam. E dançam
bem, flertam comigo, circulando as margaridas enquanto os dentes-de-leão
aguardam. Não parecem reclamar. Mas por que não posso ser assim? Por que não
consigo? Você não ligava e agora quer nossa ajuda, a mãe da Mel deve pensar
quando ela voltar. As abelhas dançando, sol forte, olho que vê entre um matagal
de cílios. Isso é a verdade, meu Deus? Ah, mãe, volto ou não? O pólen
engasgando, espirro.
Me levanto um pouco tonta, andando em círculos,
mas me sentindo mais leve; e a Mel sobrevoa com o olhar a paisagem, nenhum
ônibus – será que foi embora? A Mel vislumbra o campo e suas flores, vento da
tarde chegando, entre margaridas. A Mel deixa de manha, voando pra o trabalho.
Texto
para a reunião do Clube do Conto de 07/10/2011. Tema: “pólen”.
Foto: http://stcmmrrbpp1311.files.wordpress.com/2011/10/girl-in-field.jpg
1 pitacos:
Mel foi embora?
Gostei do conto
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