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30/01/2017

Resenha: "A obscena necessidade do verbo", de Letícia Palmeira




OBSCENIDADES ATRÁS DO PENSAMENTO



Sei o quanto soa pedante falar de si enquanto se tece uma crítica a outrem, mas entenda o leitor que estas primeiras linhas pretendem menos presunção e mais uma maneira de lhe deixar claro os critérios utilizados nas minhas observações sobre A obscena necessidade do verbo (Penalux, 2016), da paraibana Letícia Palmeira. Estruturalista que sou, deve prever o leitor a importância que dou a características formais e estruturais da obra de arte. Entretanto, como sabemos, muitos textos desafiam esses critérios, pois olhar apenas a obra é insuficiente para termos consciência do que ela mesma se apresenta. É preciso recorrer ao contexto, aos arredores, àquilo que Antonio Cândido diz ser o externo que se torna interno para enfim termos noção das qualidades da narrativa de Palmeira. Sendo assim, é importante frisar que estamos falando de um texto não apenas de uma autora, mas que representa figuras femininas.



A obscena necessidade do verbo nos apresenta uma narrativa autodiegética (Cf. GENETTE 1985), ou seja, aquela em que o narrador é também protagonista dos relatos apresentados. Trata-se de uma narradora que sente intensa necessidade de um desabafo para uma interlocutora, nomeada Lucélia. Ela ouvirá quase que passivamente todas as divagações da protagonista, funcionando assim como um ponto de referência para nós, leitores da obra. Talvez tenhamos então uma identificação maior com Lucélia, que ouve a tudo sem nada poder fazer, sequer agir como um sacerdote a recomendar o caminho para a expiação de eventuais pecados. Mas só talvez. É preciso lembrar do que afirmamos no começo: a estrutura está condicionada pelos arredores. E que arredores seriam esses?

Nos últimos tempos, temos visto a difusão mais expressiva do pensamento e de estudos feministas. O que faz com que, queria-se ou não, os temas discutidos nesses estudos se apresentem com mais frequência nas obras contemporâneas.  Talvez isso explique a forte influência de Clarice Lispector na obra de Palmeira, sendo possível (e até recomendável) que o leitor trace uma comparação com Água viva, que também nos apresenta uma narradora excessivamente digressiva, desabafando a uma interlocutora:


Este texto que te dou não é para ser visto de perto: ganha sua secreta redondez antes invisível quando é visto de um avião em alto voo. Então adivinha-se o jogo das ilhas e veem-se canais e mares. Entende-me: escrevo-te uma onomatopeia, convulsão da linguagem. Transmito-te não uma história, mas apenas palavras que vivem do som. (LISPECTOR, 1998, p. 13)



Percebamos que o jogo que a narradora de Palmeira faz com a ouvinte é similar:


Por exemplo, este momento de agora, somente será vida, quando passar de nós e se tornar uma lembrança, mesmo que remota, da nossa troca de palavras. E muito embora eu não a deixe falar tanto, nosso diálogo é verdadeiro, Lucélia. Nosso diálogo será memória. (PALMEIRA, 2016, p. 25).



As convergências entre ambas as autoras podem ser vistas como faca de dois gumes: se por um lado, atesta a qualidade de Palmeira e lhe desnuda o apuro e precisão na linguagem, especialmente no uso de monólogo interior e fluxo de consciência, por outro, revela uma autora que, apesar de já ter uma boa estrada percorrida (A obscena é sua quinta obra publicada), ainda parece pouco tímida em alçar voos que lhe deem mais singularidade.

Mas, como dissemos, aqui é impossível olhar apenas a estrutura. Palmeira é precisa na construção de uma narradora que representa o cotidiano imposto a grande parte da população feminina. As mulheres têm sido forçadas a viver o pequeno universo de suas casas, impedidas do que podemos chamar de vida lá fora. Isso faz com que os espaços descritos ganhem força extraordinária para entendermos o conflito exposto. Impossível, então, não concordar com o que diz o prefácio de Márcia Barbieri:


A narradora tem grandes insights a partir de fatos cotidianos e aparentemente banais como a limpeza de cristais, a fórmica da mesa ou um gole de café com adoçante. Temos a impressão que os objetos ao seu redor estão impregnados de vapor vital e a qualquer momento deixarão de ser inanimados e serão contemplados com o sopro da vida. A epifania pode estar guardada em uma gaveta do armário ou num canto escuro da sala (BARBIERI, 2016, p. 14. Grifo meu).




Conto, poema, romance, novela

Também vale a pena chamar a atenção para o desafio que nos parece ser classificar A obscena necessidade do verbo. Isso parecerá, ao leitor mais conservador, mais apegado a gêneros, uma afronta e mesmo um atestado de má qualidade da autora. Por outro lado, leitores mais ávidos a compreender como funcionam os entremeios dos gêneros literários e que gostam de leitores que exploram as linhas tênues entre eles terão material bastante prolífico aqui. Uma das características da obra de Palmeira é o lirismo, a narração em primeira pessoa, a indefinição de tempo. Tudo isso faz com que a autora se aproxime do que chamamos prosa poética. Por outro lado, estamos lidando com uma digressão que gira em torno de uma única figura, a da narradora, o que talvez possa ser interpretado como a tal unidade de que fala Edgar Allan Poe ou da esfericidade de Cortázar o que aproximaria A obscena do conto. Por fim, a sucessão de eventos enunciados pela narradora, aos quais ela vai tomando como ponto de partida para as divagações, podem aproximar a obra de gêneros mais extensos e heterogêneos, como a novela e o romance.  Certamente, aqueles que se divertem com o cruzamento dessas características verão na obra um enriquecimento muito grande a partir do que Palmeira nos oferece.



Concluindo

A obscena necessidade do verbo é uma narrativa fluida, curta, que representa efetivamente a figura da mulher e de sua intensa busca por voz ativa; também é uma obra que serve de tributo a grandes escritoras como Clarice Lispector e Hilda Hilst. Serve ao leitor mais introspectivo, que goste de uma prosa intimista que reflete sobre questões existenciais e que consegue, concomitantemente, expor limites de gêneros literários já consagrados pela crítica. 


Referências

BARBIERI, Márcia. “Um jorro de vida”. In: PALMEIRA, Letícia. A obscena necessidade do verbo. São Paulo: Penalux, 2016.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. Disponível em: < http://www.fecra.edu.br/admin/arquivos/Antonio_Candido_-_Literatura_e_Sociedade.pdf > Acesso em: 30/01/17.

CORTÁZAR, Julio.Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974.

GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. 3ª ed. Lisboa: Veja, 1995 (coleção Veja Universidade).

LISPECTOR, Clarice. Água viva. São Paulo: Rocco, 1998.

PALMEIRA, Letícia. A obscena necessidade do verbo. São Paulo: Penalux, 2016.



POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. POE, Edgar Allan:poemas e ensaios. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Globo, 1987 (p.77-88).

23/01/2017

Resenha: Ventre urbano (Letícia Palmeira Lizziane Azevedo - org.)




Conheço um pouco do contexto literário da Paraíba para afirmar sem medo de equívoco que ela, ao menos no que diz respeito à literatura, caminha muito longe de projetar as mulheres que se enveredam por essas áreas. Basta o leitor puxar à memória e verá que, do clássico José Lins do Rego aos contemporâneos Rinaldo de Fernandes, Arturo Gouveia e Roberto Menezes, os nomes das mulheres não costumam circular. Talvez tenha sido essa a motivação por trás de Ventre Urbano (Penalux, 2016), coletânea de narrativas curtas compostas de autoras contemporâneas paraibanas ou radicadas no estado organizada pelas escritoras Lizziane Azevedo e Letícia Palmeira. Comentaremos agora um pouco do resultado da coletânea.

            Evidente que em antologias os critérios de seleção dos autores são sempre controversos e tidos como injustos. Por causa disso, talvez alguns leitores estranhem o elenco de Ventre Urbano pela ausência de alguns nomes, como a conhecida Marília Arnaud e a premiada Renata Escarião, mas receberá em troca novos (e bons) nomes para acompanhar, tais como Mayara Vieira e Romarta Ferreira (ainda inéditas, ou seja, sem nenhuma publicação individual), somadas às estreantes no gênero, já conhecidas pela poesia, Anna Apolinário, Cyelle Carmem e Amanda Vital. Como cereja do bolo, Maria Valéria Rezende, premiada com o Jabuti de 2015, também dá as caras. O resultado que se têm é, como já enfatizado, bem comum: ausências sentidas, mas presenças que trarão boas surpresas.

            De um modo geral, a antologia se apresenta muito bem e cumpre sua premissa de dar visibilidade à produção literária das mulheres na paraíba. Saliento também que mesmo a capa é assinada por uma artista local, Luyse Costa, e dá uma impressão muito boa à obra. Entretanto, a coletânea se vende como feminista – a julgar pela introdução feita pela organizadora:


Eu preciso ser feminista para defender o que muitas mulheres, do passado que pouco sabemos, defenderam. Eu, que queria apenas fazer festa à literatura, me vejo na necessidade de dizer que, embora muitas mulheres ainda estejam vivendo na miséria e no silêncio, nós estamos aqui para que suas vozes sejam ouvidas (p.17).


            Contudo, parece não ter sido uma preocupação das autoras, já que isso não é tão presente assim nos textos (há algumas exceções, falaremos delas mais à frente). Talvez a presença de uma convidada mais engajada à luta e aos estudos de gênero (Débora Gil Pantaleão, por exemplo) engrandecesse esse propósito.

Essas primeiras observações não são o foco da minha resenha, deixo isso a alguém mais especializado em estudos feministas, citando aqui apenas para suscitar reflexões das mais diferentes aos leitores. O foco elegido aqui, sendo assim, será o conto em si, tentando deixar de lado dados biográficos e características das autoras (até porque muitas delas são minhas amigas pessoais, não seria interessante tomar isso como critério de valor).

            Como já afirmado, é natural que antologias oscilem em seus resultados, e com Ventre Urbano não é diferente. Há narrativas muito boas e interessantes e outras mais fraquinhas. Para não tornar essa resenha muito vaga, apresento uma breve análise de cada um dos contos, seguindo sua ordem de apresentação.




Pipoca doce, Amanda Vital

Relato memorialístico, um tanto sucinto e sensível, o que é bom para aqueles que creem na brevidade da narrativa curta. Entretanto, o conto em questão se apresenta breve demais, dando a impressão que autora perdeu o fôlego e não sabia como prosseguir, o que dá ao conto mais cara de poema. Até aprecio cruzamento entre gêneros, mas acredito que aqui precisaríamos de um pouco mais de ousadia para tanto. A invocação às deusas, algo bastante clichê no mundo da poesia, no início da narrativa também não me parece contribuir muito para o relato. O conto perde um grande tema (as memórias de infância da narradora) pelos problemas apontados.


Relicário, Anna Apolinário

Outro relato de memórias, desta vez com uma narradora que usa como gatilho para os devaneios um livro vermelho numa biblioteca. De tonalidade erótica, a linguagem atrapalha um pouco esse clima por ser um tanto tímida, formal, empolada. O conto ganharia mais força se buscasse representar a sordidez das memórias de desejo através da linguagem, o que deixaria a narração menos pudica. Um ponto forte é a tematização do corpo, tão comum na escrita feminina e feminista, o que pode enquadrar a narrativa nas exceções às críticas que fiz no início desta resenha.


Pássaro sem asas, Cyelle Carmem

Aqui temos a história de uma moça que recebe um telefonema e decide pegar a estrada retornando a seu lugar de origem. O relato aqui já é bem estruturado, peca apenas em ter um desfecho bastante previsível. 


Parapeito, Letícia Palmeira

Uso quase incessante de discurso indireto livre não parece ser do agrado da maior parte dos autores, talvez pela sua dificuldade de elaboração ou pelo estranhamento que pode causar a leitores mais incipientes. Entretanto, aqui temos um exemplo do domínio da técnica, bastante frequente nas outras obras da autora – técnica que faz um relato tão simples como o de uma garota que invade o apartamento de um rapaz para se atirar janela abaixo se tornar expressivo, pujante pelos cruzamentos de vozes e questionamentos que engrandecem a tensão e o tom um tanto lúdico do desfecho. 


Requiem aeternam, Lizziane Azevedo

Talvez o melhor conto da coletânea. Narrativa crua, sem excessos, casa perfeitamente com a temática escolhida que também é uma exceção ao que critiquei no início desta resenha. Aqui o viés feminista é bem mais flagrante, já que traz um retrato da violência doméstica, mais especificamente contra a mulher. O desfecho também traz à tona essa perspectiva pragmática e trágica da vida, tornando um conto bastante representante daquilo que podemos chamar de "literatura de denúncia". 


Valete de Copas, Maria Valéria Rezende

Uma narradora que se encanta com a figura de uma carta de baralho. Conto curto e direto, com um leve pezinho no fantástico, o que faz com que o leitor se divirta cruzando a linguagem denotativa e referencial com a alegórica. 


O armário da memória, Mayara Vieira

Outra vez um conto de memórias, mas aqui com uma abordagem mais pragmática. A estrutura clássica também agradará aos que preferem narrativas curtas à Poe e Quiroga. A narração é bastante sucinta e o final não desaponta.


Quimeras de Clarice, Mayara Almeida

Talvez o relato mais fraco da coletânea, estruturado em mini capítulos que deixam a narrativa longa e enfadonha. Espera-se que o leitor se atenha ao longo do conto, mas o desfecho frustra as expectativas por ser extremamente óbvio. 


O elevador, Mirtes Waleska

O mesmo desfecho do conto anterior aparece aqui, o que pode provar como esse tipo de final é um lugar comum. Entretanto, problemas que aparecem em alguns contos comentados não aparecem aqui: somos apresentados a uma narradora que relata seu encontro com uma moça num elevador de seu prédio. A temática mais apegada a questões de gênero também pode agradar a quem se interessa sobre o assunto. A linguagem também se apresenta direta, sucinta e não parece distante ou tímida ao tratar de questões afetivas. 


E agora?, Romarta Ferreira

Aqui temos a história de uma criança narrando as rusgas entre seu pai e seu avô, com linguagem lúdica e direta, que contribui para o bom desfecho. Com relação ao tema deve agradar pela rara escolha de crianças protagonistas na literatura adulta. 


Trocadilhos, Sammely Xavier

Um término de namoro. Apresenta-se até interessante graças à abordagem metalinguística do narrador, mas vai ser perdendo a um desfecho fraco. Também poderia ter um pouco mais de conflito para engrandecer o final.



A conclusão que tiro de Ventre Urbano é que temos aqui um bom catálogo de autoras, com propostas interessantes para o conhecimento dos leitores. Convém salientar o que digo sempre em minhas resenhas: as críticas aqui apresentadas não são um ataque a qualquer autora, tampouco significam que a autora é ruim, apenas denotam que, a meu ver, o texto não foi feliz e que nessa vez a autora errou a mão. A oscilação da coletânea talvez se justifique pela quantidade de autoras estreantes na narrativa curta, mas muitas delas já mostram certa afinidade com o gênero. Também há contos muito bons e que atestam a maturidade das autoras mais experientes e revelam novas promessas que dão seus primeiros passos. Recomendo a leitura a todos os que quiserem conhecer mais sobre boa parte da produção literária paraibana.








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