14/10/2011

Acho que ouvi um ganido: por que é tão difícil achar uma letra boa? (parte IX)



Saudações amigos, fazia um tempo que não discutíamos sobre boas e más letras de música. Sendo assim, retomo nossa série trazendo para a discussão um grande artista que tem causado polêmica por onde seu novo disco tem tocado a ponto de fazer muitos se perguntarem se não seria hora de uma parada em sua carreira: Chico Buarque. Entretanto, não é da famigerada mulher sem orifício de que falaremos (quem sabe no futuro?). Com vocês, Sinhá:

Sinhá, por Chico Buarque e João Bosco.

Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem
Para que me pôr no tronco
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz
Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém
Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz
E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá


Como podemos ver, o tema da canção pode ser visto como a discriminação racial e a escravidão. a pequena narrativa nos apresenta um escravo que argumenta contra seu açoite, este causado por supostamente ter visto a sinhá em seu banho. Dentro desse discurso que é quase uma prece, temos na voz poética os ecos da disseminação da idéia do homem branco como superior: "Por que me faz tão mal / Com olhos tão azuis". Outro reflexo da imposição da cultura caucasiana/ branca pode ficar evidente ao percebermos a mistura de crenças que está compondo o protagonista:  "Eu choro em iorubá / Mas oro por Jesus". Sem dúvido, um conflito exposto de maneira bastante comovente.

Até aí já teríamos uma grande canção, mas, como se não bastasse, os últimos versos nos apresentam uma reviravolta nos fatos que engrandece ainda mais a obra. Descobrimos que a história está sendo passada não pelo próprio escravo, mas por um cantor que também é produto da miscigenação e do entrecruzar de culturas: "E assim vai se encerrar /O conto de um cantor /Com voz do pelourinho E ares de senhor". Os três últimos versos, além de enfatizarem a idéia agora aqui exposta, põem em xeque o discurso, graças a palavra "enfeitiçou". A palavra bem pode representar o encantamento da sinhá para com o escravo, seja por atração física ou por uma "mandinga" do escravo, sugerindo uma traição. Entretanto, o disurso do escravo é categórico como não tendo visto a senhora ao banho; como não temos o ponto de vista da senhora, não temos como saber se o que ele relata aconteceu assim, enquanto o cantor também se abstém de explicação ou de tomar qualquer partido. O final em aberto, ainda por cima, impõe ao leitor/ ouvinte uma revisão da sua própria forma de pensar, pois, por questões psicossociais, tenderíamos a confiar na palavra do escravo, como se um negro fosse incapaz de envolver-se com a moça branca, esposa do senhor de engenho. E então houve adultério? Sim? Não?

Bom, o exemplo de uma grande música está dado, também servindo aos que acreditam que o grande Chico "já deu o que tinha de dar". Essa canção mostra que aidna há vida ná música - consequentemente, boas letras. Deixo vocês com um videozinho para animar.



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