03/07/2011

Por trás do véu



 
“Geranium killer
Throat of soil of and mind like stone
Please don't defend a silver lining (…)”

The Dirty Projectors, “Two doves” (2009).
 
Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto do corpo, pulsante na veia, nos veios das portas, contemplando o serpentear lerdo das coxas; corpo catedral, corpo ainda inviolado ecoando gritos que não podem alçar vôo, circulando entre as mãos desejosas de tocar a rosa, a rosa vermelha do desespero, pois o corpo profana a candura, o corpo encarde a ternura e a converte em agrura;  eu estava deitada entre o feno da casa velha, perto do bosque, o mesmo bosque que me acolhe quando o aperto contra o seio da mãe não é suficiente; mamãe me acha estranha, padece sem ver que ela é quem deveria despertar, a cadeira de balanço, o ir e vir, o cabelo em coque, não mamãe, se Deus nos deu cabelos foi para que nos fossem como asas, quero minhas asas amarrando-se só a uma rosa, que alcem vôos de risadas gostosas, aguardando quem se foi e me pôs chorosa; não esconde de mim, mamãe, eu estava perto, ouvi a senhora pedir ao Pedro dizendo traga ele de volta, Pedro, traga ele de volta e não diga nada pro teu irmão nem pras tuas irmãs que você vai, mas traga ele de volta, por que esconder sofrer se somos todos falhos? Somos todos parte do mesmo galho em frangalhos, que permitem um fruto terno e doce, só amargo tal o amargor dos bagos de uvas mal criadas enroscadas na videira; eu sofro muito e não posso dizer nada, mas acredito que meus lábios já disseram tudo, não bem com palavras como a do terço que rezo à capela toda noite em que me fervem as pernas, mas no tremer e titubear de querer gritar e ver no grito sua salvação e sua perdição; mamãe, André ganhou o mundo e o levou de mim, André meu, irmão, por que não lutaste feito homem? Quem sabe não teria me embebido de coragem para romper esse silêncio que nos circundava, perturbava e estuprava a consciência? André, sei muito da lida, sei que tuas mãos são boas de plantio, também eu sei colher, sei por a mesa, sei deixar perfume de flor em tua roupa para que te sintas bem, do jeito que mamãe sempre fez com nosso pai; André, meu irmão, se querias correr, por que não me carregar? Nosso amor não venceria tudo? Tiveste medo de sucumbir, por que não o fazer com minhas pernas cingidas nas tuas nas noites de frio? Por que não o fazer cosendo nossos olhos, buscando-lhes preencher o vazio? Por que não o fazer amainando a saliva de um com a saliva do outro? Não quero voltar para casa, vem vindo chuva e sei que a bonança será amarga e gradativa, vai me despedaçar as tentativas de viver, o pão não tem mais o mesmo sabor, a mesa também não, apenas o sermão, tempo é senhor da razão, que ele e somente ele consiga me orientar, pelo menos nos momentos em que meus dedos lépidos não mais se controlarem, uma conta do meu rosário para minha paixão, duas contas para o meu monte de Vênus, todas as contas deste cordão para os teus olhos, dez terços bem rezados para a irmã acometida! A irmã enferma – por que Deus não é mulher? A irmã que não tem verbo nem verso e tergiversa com o corpo, me lembro da alegria da dança, era meu refúgio, era nosso refúgio, eu via, meus pés em rodopios centrípetos, o vento em rodopios fervilhantes, os cabelos em rodopios gritantes, a rosa em rodopios querelantes, ávidos pela alforria; eu, meu irmão, não tenho culpa de ser o demônio, não tenho culpa de ser o coisa-ruim, a tentação, a luxúria, a lucidez, a leve língua que lambe o sal do teu suor em sonho trancada num quarto escuro; não sei mais dançar, me embriago desse cheiro mofado da terra que logo vai me devorar, não, André, era você quem deveria me devorar, você sabia que meu silêncio era preciso, sempre falei mais com o que silencio, tanto que agora ele me denuncia, nosso pai me olha estranho, mamãe está desgostosa, a cadeira de balanço, o cabelo em trança insípida, eu rezando, Ana, coitada, pés descalços, feito sonâmbula, passa o dia vagueando pela fazenda; ou num canto recolhido do bosque, mãe-terra que espreita todo nosso sofrer, mãe que deve também não nos querer, pois dela sinto a beleza, mas também a morte; não tenho culpa dos olhos que olham os meus como olhos de salamandra, como olhos de bode preto, como olhos sangrentos, sangue que se esvai e azeda leite. Amor, amor, amor covarde esse, Deus todo-poderoso sabe que se os colhões que te cabem fossem meus eu enfrentaria Iohána com força e vontade até um dos dois sucumbir; mas não, meu irmão, meu amor, eu apenas rezo, eu...  Eu não tenho a força, nem o verso de minha dança tenho mais, pois você o carregou consigo. Para mim ficou o azedo no peito, para mim ficou o parapeito a que me dirijo agora, levanto desse feno, enxugo o rosto quase o rasgando de tanto apertar, as asas, os cabelos, a pomba quer o vôo mais livre, o libertar, eu corro, o fogo no coração, o rosário entre as pernas, as ovelhas assustadas, o vento forte, vem chuva, vem chuva, a boca seca, as asas, que lindo é o fim de tarde cinza-sépia de nuvens nada tépidas, Ana! Contemplo o precipício. Ana! Avisto o princípio! Ana! Observo Cristo. Ana! O quê? Ana! Alguém me chama? Ana! E com veemência clama por mim, que é isso meu Deus, transpus a linha fina de carmim que separa insanidade e lucidez? Sinto-me desfalecendo, vertigem, o abismo, a queda, quem me chama, meu irmão, quem me chama? Caio no chão, beirando o fim, meus olhos embaçados, é Lula? Sim, é Lula! Coitado de meu irmão, mais novo, ainda sem nada saber da vida, por que me interromper? Maktub? Ana! Venha! O Pedro, nosso irmão Pedro voltou, papai quer todos à mesa pra anunciar as boas novas!

[Wander Shirukaya]
Conto  baseado na obra Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, 1975.
Foto: http://cinemaedebate.files.wordpress.com/2010/03/lavoura-arcaica-foto-5.jpg

5 pitacos:

interessante... nao conhecia o texto... seguindo vc..

www.jaylsonbatysta.blogspot.com

www.simplesmentejaja.blogspot.com

me segue...

texto sensacional, bom demais.

Esse é o nosso Japonêgo caixa baixa.
Muito bom.

...belas imagens...
... bela sonoridade ...
... belo conto ....

Muito obrigado!!

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