20/08/2014

O silêncio de Lucy





Não houve mais nenhuma comoção quando souberam do suicídio do pai. Não por não gostarem dele, e sim por terem já derramado lágrimas demais nos outros desastres. Lucy, como sempre, estava no quarto, com vários papéis a sua volta e uma caixa com um lápis ou outro caído, mais vários gizes espelhados por toda parte. Não vem pra cá agora, menina. Espera que eu venho te chamar, tá? Nem parecia que eu tinha falado com ela; Lucy permanecia absorta no tapete do quarto. A polícia chegou e novamente me fez uma porção de perguntas. Sou a empregada da família há anos, estou chocada com tanta tragédia. Me chamo Otávia. Não, não suspeito de nenhum motivo para isso tudo, senhor. Claro que estarei à disposição. Recolheram o corpo de seu pai, cercaram o banheiro pra examinar tudo, o chão, a pia, a corda pendurada que ele usou. Continuava perplexa, tentando entender.
Tudo bem que não foi um atrás do outro, mas é muito estranho assim mesmo. Dona Cecília ficou cega misteriosamente, uma infecção no hospital, somada aos problemas do parto; de certa forma esses problemas justificam a depressão profunda daquela época em que nasceu a pobre Lucy, e também o fato de ter se atirado da janela. Não estava presente na hora. Só vim saber do ocorrido quando cheguei da faculdade, tarde da noite. As pessoas nervosas na frente do prédio, sem saber o que fazer, o restante da família chorava e não sabia fazê-lo e andar ao mesmo tempo, atrapalhando o socorro.  Me pediram que cuidasse da pobre Lucy. Corri pra o quarto dela, encontrei-a dormindo como um anjo. Vigiei-a até eu mesma cair no sono horas mais tarde.
Eu não estudava nessa área, mas li bastante sobre autismo e coisas que se parecessem. Isso porque a família toda achava que a pobre Lucy tinha algo de muito estranho. Todos achavam que aquele “crescimento para dentro” de que falavam os médicos tinha a ver com a morte precoce de D. Cecília. Os irmãos da criança sofreram, mas eram grandinhos na época; já a Lucy, mesmo bebê, assistiu muito daquela tragédia. Viu reações de todos, ficou no seu cantinho parecendo ter decidido crescer nele mesmo. Das atividades que os médicos passaram, ela parece ter gostado mesmo de desenhar e rabiscar com gizes e lápis pra lá e pra cá. Mesmo quando a irmã mais velha cortou os pulsos no mesmo banheiro em que seu pai morreria, ela não parecia se interessar. Os rabiscos, inclusive nas paredes do quarto, já eram suficientes pra seu bem-estar. Era sem dúvida seu maior prazer. A irmã morreu sem motivo aparente; era querida por Deus e o mundo, mas de uma hora pra outra aconteceu. Acharam no quarto alguns textos, um diário. Na verdade, parecia mais um caderno de mensagens sem muita conexão. “Preciso fugir enquanto há tempo”, esta frase se repetia às vezes. A polícia arquivou tudo quando cansou de procurar a razão daquele fatídico acontecimento. Fiquei com a pobre Lucy no dia do enterro da irmã, pois ela era muito nova pra ir; acabou indo já no enterro do avô, que tinha disparado na boca anos depois. Nada em Lucy esboçava uma reação pior do que aquela de silêncio. Ela continuava cercada de amor e carinho; a essa altura eu já tinha terminado meu curso e podia passar mais tempo cuidando dela, como tinha recomendado o pai.
O avô de Lucy vivia também na casa com sua esposa, D. Celeste. Vivia se queixando de dores pelo corpo, reumatismo, essas coisas. Mas mesmo assim sempre cuidava dos netos, e é certo que tinha um carinho todo especial pela mais novinha, até pelos seus problemas. Ela é débil mental, mas não tem culpa, eu como avô vou sempre cuidar dela. Ela permanecia rabiscando, gastando caixas e mais caixas de lápis. Raramente saía do quarto, os médicos falavam que não sabiam por que o tratamento não surtia efeito. Eu também não entendia, e me sentia cada vez mais intrigada com aquelas mortes sem pé nem cabeça.
Pra falar a verdade, até um pouco de medo me passava às vezes. Era muito estranho tudo aquilo. Às vezes me sentia vulnerável naquele mau agouro da casa inteira, eu não era como Lucy, que conseguia viver avessa a tudo e todos, e eu era estudada. Eu sabia que no fundo isso não passava de crendice. Também até seria fácil procurar outro emprego, um que me tomasse menos tempo, mas eu já era muito apegada àquela família, apesar dos pesares. Nem presenciei a morte do avô de Lucy, pois tinha sido na minha folga, mas mesmo assim sonhei com aquela descrição perturbadora que fizeram. Tudo bem que quando o irmão da pobre Lucy se jogou na frente do trem na estação tudo foi ainda mais chocante, até porque ele não estava só naquele momento. Lucy e eu tínhamos saído com ele pra passear – a pobrezinha nunca sai, decidimos levá-la a algum parque. Ela viu tudo, toda a seqüência: ele se jogar, o trem passar, o trem sumir no horizonte, olhava estranho pra o trem, nem sequer piscava. Viu os transeuntes se chocando com o ocorrido, viu quando eu fiquei estatelada, mas não esboçou uma mínima reação. Horas mais tarde, no caminho de volta pra casa, eu tomava o milésimo copo d’água. Lucy, pobrezinha, olhava da janela do trem pra a paisagem verdejante.
— É melhor fugir.
Até hoje tenho minhas dúvidas se foi delírio meu ou se realmente a pobre Lucy tinha reagido ao mundo exterior e balbuciado algumas palavras. O pior é que eu deveria ficar feliz, mas a tensão toda diante de tanta morte me deixou sem raciocínio. Óbvio que aquelas palavras que pensei ouvir também me deixaram desnorteada. Como eu estava na hora, a polícia chegou e me fez uma porção de perguntas. Sou a empregada da família há anos, estou chocada com tanta tragédia. Me chamo Otávia. Não, não suspeito de nenhum motivo para isso tudo, senhor. Claro que estarei à disposição. A pobre Lucy se recolheu aos seus desenhos e a seus aposentos, não disse nenhuma palavra; continuei sem compreender aquilo tudo. Quando ia ver a minha família na folga eu não comentava muita coisa, guardava pra mim. Minha mãe queria que eu largasse aquele emprego. Com o passar dos anos a condição tinha melhorado e procurar algo novo e melhor não seria tão difícil. Mesmo assim eu analisava o caso sem decidir nada. Muitas vezes me perguntei se era isso mesmo que deveria ser feito. Abandonar aquela família que sempre me tratou como família, uma criança que vejo praticamente como filha, mesmo os outros vendo como débil mental por não respeitarem seu universo avesso.
Lucy esteve no enterro do irmão, que tinha só dezesseis anos quando morreu. A família toda se destruía sem motivo aparente. Desse jeito a pobrezinha nunca vai ficar boa; o pai sem saber mais o que fazer. Pensou em levá-la pra outro canto, mas acabou decidindo o melhor: ele tinha que permanecer ao seu lado e de todos que a amavam. Muita terapia pra ela, que passou a interagir mais uma vez com o mundo, agora através de seus desenhos. Os médicos se sentiam desolados ao ver com que perfeição, considerando que eram rabiscos de criança, ela conseguia expor as mortes que lhe cercavam. Desenhos bastante simples, mas que mostravam com crueza o que seus olhos liam daquilo tudo. Bem que sua irmã costumava dizer que ela era bastante perspicaz, que ela não estava alheia ao mundo. Começo a pensar o mesmo, mas ainda tenho medo. No apagar das luzes então nem se fala.  Dormia no quarto de empregado, mas passei a acordar no meio da noite, cismada. Juro que algumas vezes ouvi vir do outro lado da parede o barulho de giz raspando, como se a garotinha estivesse ainda acordada, desenhando na parede. Uma vez, pouco antes de sua avó ser encontrada envenenada na cama, cheguei a sair do meu quarto pra conferir se Lucy realmente dormia. Ao entrar no quarto não havia movimento nem de mosquitos. Ela dormia feito anjo, como sempre fez. Graças a Deus essa minha filha nunca me deu trabalho para dormir, dizia sempre o orgulhoso pai. Eu lia e relia alguns papéis sem ter uma resposta que me servisse; se eu não fosse tão consciente das coisas diria que tinha alguma maldição em cima dessa família, e que alguma coisa desse universo fechado da pobre Lucy a protegia. Deixava isso pra lá; quando estava já superando tudo, outro suicídio atrapalha tudo. Assim se foi D. Celeste, num dia de céu azul encontrada morta no quarto. A perícia detectou veneno em seu corpo. Fui mais corajosa, levei o que sobrou da família, Lucy e seu pai pra mais um enterro. A garotinha já estava com nove anos, parecia estar ainda naquele estado de sempre. Nada a surpreendia, olhava mais os carros passando ao longe do que a cerimônia de sepultamento.
O pai estava se derramando em desgosto; não sabia o que fazer. Eu muito menos, cada vez que via que a garotinha tinha feito algum desenho estranho me assustava. Depois criava forças e seguia firme, afinal eu a amava como se fosse filha. E como se fosse filha continuei a tratá-la, mesmo quando o pai dela acabou, depois de anos, se casando novamente. A moça era jovem, bonita, vistosa, e parecia gostar também da menina. Pelo menos da parte da moça, elas se davam bem. A pobre Lucy ia ao médico, mas não parecia ter maior reação do que as que tinha tido de maneira avulsa estes anos todos.
O pior foi que a amizade das duas não vingou. A nova esposa achava que bastaria algum tempo de conversa e atenção pra chamar a atenção da criança. Isso, como já era de se esperar, não aconteceu e acabou gerando um grande conflito. Como o pai não abria mão da filha, deu até pra nesse caso entender porque foi que a nova esposa acabara se matando. Amava demais o novo marido, mas estava na cara que não agüentava dividi-la com aquela deficiente. O desgosto só aumentou então; por este motivo ele sucumbiu à pressão e acabou enfiando uma corda no pescoço – pelo menos é o que minha razão consegue concluir desse fim, mesmo sem entender como essas coisas começaram a acontecer.
Fiquei alguns dias cuidando da pobre Lucy, que só tinha a mim agora e com urgência teria seu futuro decidido pelo Ministério Público. Em alguns dias eu estaria desempregada, vendo alguém que tanto amei sem compreender ir pra um abrigo ou pra casa de algum parente distante. Pensei comigo sobre tudo, não me fechava numa só resposta convincente. Se tem maldição, não atinge só quem é da família, pois a nova esposa do pai da criança não era. Ou será que morreu justamente por entrar pra esta família? E quanto a mim? Parei de pensar besteiras, só que não demorou muito pra meu mundo rachar de vez: Lucy desenhava no quarto como sempre nesse dia. Era, inclusive, seu aniversário de treze anos.
“Sua vez?”, essa era a pergunta escrita num desenho que tinha feito. Era um desenho de extremo mau gosto, refletia a agonia daqueles que morreram a sua volta. Em fração de segundos compreendi a pergunta, sem sequer ficar feliz por ver que a pobre Lucy sabia escrever. Corri do quarto imediatamente, ela, com aquele jeito estranho de sempre, me seguiu lentamente. Corri pra o meu quarto, arrumei minhas malas. Já está bom, já vi sete mortes. Basta. Ela batia na porta. No que a abri ela me abraçou, meio sem expressão. Ainda afoita, derrubei a mocinha no chão; os gizes que carregava caíram e rolaram todos. Pensei ao olhar pra trás tê-la visto chorando enquanto me seguia.
Essa cena me perseguiu sempre aqui pelos corredores do sanatório. Os médicos dizem que estou reagindo bem ao tratamento, mas me amedronto, ainda mais ao ver que deixaram que ela me visitasse. Carregando um monte de papéis desenhados pra me mostrar; corri por todo o corredor do oitavo andar, ignorei-a. Me tranquei numa sala branca por lá, ouvindo-a bater na porta. Bateu várias vezes, mais e mais forte, sem dizer uma palavra, como sempre. A janela. A janela. A janela. Nunca me pareceu tão convidativa...



In: SHIRUKAYA, Wander. Balelas. RJ: Mutuus Editora, 2011.

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