19/02/2012

Coletivo Zona Sul*



             Quase cinco da tarde, coletivo quase vazio, a moça se senta quase ao meu lado. Muito atraente, bem apanhada, mas tinha um nariz que denunciava fácil de onde vinha. Deve andar de ônibus à força.  Um porre. Até a combinação da roupa era incômoda, cabelos milimetricamente à moda da novela, que novela é mesmo? Ah, não interessa. É só mais uma coisa para arrancar dinheiro de pobre e fazer pessoas como aquela moça esfregar suas posses na cara dos outros. Olhava o relógio; minutos após olhava de novo e de novo, deve estar desconfortável, às vezes faço coisas desse tipo, assim, repetidas, para dizer que estou fazendo algo. Ao término da saia justa era possível ver uma pele de uma sensualidade incrível; mais sedutora ainda naquela pose, as pernas cruzadas, o olhar perdido na janela como quem não está nem aí para o resto do mundo. Melhor deixá-la quieta no seu mundinho ridículo.
            Não tardaria muito desceria do ônibus, enquanto a parada não chegava, subiu um senhor, camiseta com dizeres religiosos, uma caixinha com artigos chineses na mão. Boa tarde, irmãos, só queria um momento da sua atenção, estou aqui pra contar pra vocês o meu testemunho, que me livrou das drogas e me trouxe pra Jesus. A moça parece incomodada. Patricinha miserável! Pegou um fone de ouvido da bolsa, ligou o seu player, parecia alto. A bolsa era pequena e tinha uns adornos com frases em francês. Era francês ou russo? Tanto faz, não traduziria nem um nem outro. Incomodada, isso ela realmente estava. Deve ser atéia, ateu adora tripudiar dessas coisas. O rapaz passa por mim, tiro algumas moedas. Não, puxo uma nota que lhe valha alguma coisa a mais, entrego. A paz do senhor, irmão. Como eu previa, a branquela deixou que ele passasse, só se moveu pela freada brusca do ônibus. O homem desceu, seguimos viagem.
            A minha parada chegando, levantei logo e aguardei que o veículo parasse. Para minha surpresa, roça em mim a moça, vindo logo atrás. Olho meio assim, ela se afasta, incomodada, os fones ainda no ouvido. Mais uma freada, ela esbarra em mim. Ia lhe abrir caminho, mas ela se esgueirou, passou e desceu rápido, com indiferença, nem um pedido de desculpas ao menos.  Desci em seguida, ela segue na calçada, o vai e vem dos quadris destacando-se, salto ato. Meu telefone toca.
            Demorei um pouco falando, aproveitei para comentar com meu amigo, só você vendo, uma puta patricinha toda metidinha, chegar em casa vou escrever um texto sobre ela no meu blog. Ela vai ver... Conversamos outras bobagens e desliguei. Segui caminho, ia a uma feira de troca que estava acontecendo ali perto. Várias ações em prol da solidariedade. Chegando lá, um grupo de escritores lê contos para os presentes. Confesso que estava um pouco sem graça a coisa, chamou-me mais a atenção um grupo de crianças morrendo de rir mais ao fundo. Fui ver de perto, vamos dar um abraço no moço, gritou um palhaço entre elas. A criançada toda quase me derruba.
           — Boa tarde senhor, bem-vindo à Feira Solidária! Compra alguma lembrancinha? Você está ajudando estas criancinhas que vieram visitar a gente hoje, são do Lar Vida Feliz. Tem sacolinhas, cadernetas, tartaruguinha de porta...
            Quis pedir um daqueles itens artesanais, mas a voz não saiu; apesar da maquiagem pesada, de perto reconheci, olhei para baixo, fitei-lhe as belas pernas brancas, corei, recolhi-me à criançada sem maldade.

* conto escrito para a reunião especial do Clube do Conto na Feira Solidária de Tambaú, aos 11/02/2012. Tema: "Feira". 

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