VISITA AOS COÁGULOS DA
MEMÓRIA
A literatura é muito vasta e essa vastidão é
fortemente alimentada pelo nosso comportamento frente à história. Isso faz com
que algumas tendências nessa arte se sobressaiam. Uma delas é a de uma
literatura interessada na preservação das memórias, tal como acontece em Naufrágio entre amigos, segundo livro de
Eduardo Sabino. Aqui, veremos uma seleção de 12 contos que podem ser vistos
como um tributo às memórias. Todavia, as memórias a que somos apresentados não
são bem as do narrador (ele, em grande parte dos contos, parece ser o mesmo), e
é aí que o livro cresce em riqueza para o leitor.
Como disse, a literatura é feita de tendências. No que
diz respeito à forma com que o gênero conto
tem sido abordado, uma é bastante famosa e parece ser a que Sabino prefere: a
que popularmente conhecemos como “teoria do iceberg” de Hemingway. Essa
tendência consiste em escrever de forma que algo mais importante esteja
“submerso”, ou seja, o mais importante de um conto não se conta, fica cifrado
nos interstícios da narrativa que está à mostra. Também por isso é possível
compreender a prosa de Sabino a partir do pressuposto de que “um conto sempre
conta duas histórias” (PIGLIA, 2004, p.89). Isso faz com o que vejamos os
contos da compilação de forma mais ampla. Eis então a grande beleza dos contos
de Sabino: não estamos lidando apenas com as memórias de um narrador, mas de um
povo, de um coletivo, de uma comunidade. Percebendo isso, o leitor poderá
prestar atenção ao que está fora da ponta do iceberg: as memórias que se diluem
e se costuram entre a memória do narrador. Para ficar mais claro, peço
permissão para comentar com mais detalhes (spoilers) o conto “Jogo de três”:
Nos sábados, Fabiano abria mão da
vontade de pensar e jogávamos futebol e corrida. Mas só uma hora. Depois vinha
um jogo de fases ao estilo adventure,
dois jogadores. Power rangers era um game híbrido de luta e aventura, nosso
estilo preferido quando estávamos os três. Havia um castigo a quem perdesse no
futebol: jogar com o ranger rosa. Um dia Fabiano o escolheu e não havia perdido
um jogo no futebol. “Eu acho que rosinha é a sua cara”, Lucas disse, rindo
sozinho (SABINO, 2016, p.98).
O conto narra as memórias de adolescência de Eduardo
com mais dois amigos, Fabiano e Lucas, que sempre se reuniam para jogar
videogame, seja em casa ou nos fliperamas de Nova Lima - MG. A citação mostra a
típica lembrança lúdica do período, mostrando-se até um tanto boba à primeira
vista. Entretanto, quando ao decorrer da narrativa, ficamos cientes de que
Fabiano, o colega que era vítima das piadas, revelara anos mais tarde sua
homossexualidade, o trecho ganha outra leitura. Não mais as memórias
saudosistas do narrador, mas a história de um rapaz muitas vezes incompreendido
por causa de sua singularidade. A relação entre as duas histórias se torna
ainda mais tensa quando vemos que Lucas, o outro amigo, ao crescer, apresentava
um comportamento bastante preconceituoso, o que o impedia de perceber o
afastamento de Fabiano da turma:
Então pergunto sobre Fabiano. “Tem
visto? Vocês ainda conversam?” Lucas abaixa os olhos, semblante triste, e então
vejo brotar uma raiva onde antes havia uma expressão de mansidão absoluta.
“Aquele lá se perdeu. Só anda com as amiguinhas agora. Tá atolado no pecado”.
Faz então um discurso atabalhoado, sem coesão, citando passagens do antigo
testamento e dizendo que o mundo de hoje está pervertido e sem valores. Como
Sodoma e Gomorra.
Faço um sinal para o garçom quando
ouço o termo ditadura gay. (SABINO, 2016, p.107-108).
A situação culmina em um final forte e que fará o
leitor pensar bastante sobre como lidamos com nossas memórias. Os outros contos
seguem processo parecido. Recomendo atenção às pessoas com quem o narrador se
depara. Elas são a grandeza das histórias de Sabino.
O leitor atento já deve ter percebido que falo aqui de
um narrador, mas de vários contos, porque a voz que narra, salvo em
“Assombros”, parece ser sempre a mesma. Isso confere a Naufrágio entre amigos uma característica especial: a composição
dos contos segue tamanha confluência que é possível ignorar as fronteiras do gênero
e ler a obra como um romance memorialista, em que cada a capítulo somos
apresentados a diferentes eventos da vida de Eduardo, o narrador, e sua relação
com as figuras com quem crescera na cidade de Nova Lima. Como costumo dizer,
pessoas muito apegadas a gêneros podem ver essa característica como defeito,
mas elas devem primeiro ver que não há motivo para alarde, já que os contos,
apesar de um eixo temático em comum, possuem autonomia e independência entre
si.
Para não ficarmos apenas nas flores, algo que me
incomodou em alguns contos foi certa dispersão em assuntos pouco produtivos
para o final, como acontece no conto-título. Isso não significa que o conto
seja fraco, mas que seus eventos iniciais poderiam ser exibidos de maneira mais
concisa, sem tantos detalhes, já que não contribuem diretamente para o
desfecho. O mesmo pode ser visto em “Discografia do fim”, embora o conto deva
agradar os mais saudosistas pela quantidade de referências à música –
especialmente dos anos 90. Por esse ponto de vista da concisão, contos mais
curtos como “Assombros” e “Estouros” demonstram apuro impecável, talvez este
último o carro-chefe da coletânea – destaque ao desfecho arrebatador causado
pelas duas histórias costuradas na narração.
Já o último conto do livro, “Buracos”, retrata bem
outra característica de Sabino: o flerte com a literatura fantástica. O conto
apresenta a cidade de Nova Lima vivendo uma “epidemia” de buracos. Buracos
surgem no chão e as pessoas os procuram para se suicidarem. A estrutura da
narração faz com que lembremos daquele fantástico popularizado na américa
latina por Rulfo, Cortázar e cia., em que os acontecimentos que desafiam a
realidade são regra, não exatamente exceção dentro da narrativa.
Por fim, podemos dizer que Naufrágio entre amigos é uma obra bastante forte e que revela um
autor já com maturidade e rumos promissores. Recomendada a todos os que buscam
entender como se dá a preservação de uma memória coletiva e afetiva de um
lugar, dos pequenos espaços da vida cotidiana.
Referências
PIGLIA, Ricardo. Novas teses
sobre o conto. Formas breves. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 95 – 114.
SABINO, Eduardo. Naufrágio entre amigos. São Paulo:
Patuá, 2016.
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