OBSCENIDADES ATRÁS DO PENSAMENTO
Sei o quanto soa pedante falar de si enquanto se tece
uma crítica a outrem, mas entenda o leitor que estas primeiras linhas pretendem
menos presunção e mais uma maneira de lhe deixar claro os critérios utilizados
nas minhas observações sobre A obscena
necessidade do verbo (Penalux, 2016), da paraibana Letícia Palmeira.
Estruturalista que sou, deve prever o leitor a importância que dou a
características formais e estruturais da obra de arte. Entretanto, como
sabemos, muitos textos desafiam esses critérios, pois olhar apenas a obra é
insuficiente para termos consciência do que ela mesma se apresenta. É preciso
recorrer ao contexto, aos arredores, àquilo que Antonio Cândido diz ser o externo que se torna interno para
enfim termos noção das qualidades da narrativa de Palmeira. Sendo assim, é
importante frisar que estamos falando de um texto não apenas de uma autora, mas
que representa figuras femininas.
A obscena
necessidade do verbo nos apresenta uma
narrativa autodiegética (Cf. GENETTE 1985), ou seja, aquela em que o narrador é
também protagonista dos relatos apresentados. Trata-se de uma narradora que
sente intensa necessidade de um desabafo para uma interlocutora, nomeada
Lucélia. Ela ouvirá quase que passivamente todas as divagações da protagonista,
funcionando assim como um ponto de referência para nós, leitores da obra.
Talvez tenhamos então uma identificação maior com Lucélia, que ouve a tudo sem
nada poder fazer, sequer agir como um sacerdote a recomendar o caminho para a
expiação de eventuais pecados. Mas só talvez. É preciso lembrar do que
afirmamos no começo: a estrutura está condicionada pelos arredores. E que
arredores seriam esses?
Nos últimos tempos, temos visto a difusão mais
expressiva do pensamento e de estudos feministas. O que faz com que, queria-se
ou não, os temas discutidos nesses estudos se apresentem com mais frequência
nas obras contemporâneas. Talvez isso
explique a forte influência de Clarice Lispector na obra de Palmeira, sendo
possível (e até recomendável) que o leitor trace uma comparação com Água viva, que também nos apresenta uma
narradora excessivamente digressiva, desabafando a uma interlocutora:
Este texto que te dou não é para ser visto de perto: ganha
sua secreta redondez antes invisível quando é visto de um avião em alto voo.
Então adivinha-se o jogo das ilhas e veem-se canais e mares. Entende-me:
escrevo-te uma onomatopeia, convulsão da linguagem. Transmito-te não uma história,
mas apenas palavras que vivem do som. (LISPECTOR, 1998, p. 13)
Percebamos que o jogo que a narradora
de Palmeira faz com a ouvinte é similar:
Por exemplo, este momento de agora,
somente será vida, quando passar de nós e se tornar uma lembrança, mesmo que
remota, da nossa troca de palavras. E muito embora eu não a deixe falar tanto,
nosso diálogo é verdadeiro, Lucélia. Nosso diálogo será memória. (PALMEIRA, 2016,
p. 25).
As
convergências entre ambas as autoras podem ser vistas como faca de dois gumes:
se por um lado, atesta a qualidade de Palmeira e lhe desnuda o apuro e precisão
na linguagem, especialmente no uso de monólogo interior e fluxo de consciência,
por outro, revela uma autora que, apesar de já ter uma boa estrada percorrida (A obscena é sua quinta obra publicada),
ainda parece pouco tímida em alçar voos que lhe deem mais singularidade.
Mas,
como dissemos, aqui é impossível olhar apenas a estrutura. Palmeira é precisa
na construção de uma narradora que representa o cotidiano imposto a grande
parte da população feminina. As mulheres têm sido forçadas a viver o pequeno
universo de suas casas, impedidas do que podemos chamar de vida lá fora. Isso
faz com que os espaços descritos ganhem força extraordinária para entendermos o
conflito exposto. Impossível, então, não concordar com o que diz o prefácio de
Márcia Barbieri:
A narradora tem grandes insights a partir
de fatos cotidianos e aparentemente
banais como a limpeza de cristais, a fórmica da mesa ou um gole de café com
adoçante. Temos a impressão que os objetos ao seu redor estão impregnados de
vapor vital e a qualquer momento deixarão de ser inanimados e serão
contemplados com o sopro da vida. A epifania pode estar guardada em uma gaveta
do armário ou num canto escuro da sala (BARBIERI, 2016, p. 14. Grifo meu).
Conto, poema, romance, novela
Também
vale a pena chamar a atenção para o desafio que nos parece ser classificar A obscena necessidade do verbo. Isso
parecerá, ao leitor mais conservador, mais apegado a gêneros, uma afronta e
mesmo um atestado de má qualidade da autora. Por outro lado, leitores mais
ávidos a compreender como funcionam os entremeios dos gêneros literários e que
gostam de leitores que exploram as linhas tênues entre eles terão material
bastante prolífico aqui. Uma das características da obra de Palmeira é o
lirismo, a narração em primeira pessoa, a indefinição de tempo. Tudo isso faz
com que a autora se aproxime do que chamamos prosa poética. Por outro lado,
estamos lidando com uma digressão que gira em torno de uma única figura, a da
narradora, o que talvez possa ser interpretado como a tal unidade de que fala
Edgar Allan Poe ou da esfericidade de Cortázar o que aproximaria A obscena do conto. Por fim, a sucessão
de eventos enunciados pela narradora, aos quais ela vai tomando como ponto de
partida para as divagações, podem aproximar a obra de gêneros mais extensos e
heterogêneos, como a novela e o romance.
Certamente, aqueles que se divertem com o cruzamento dessas
características verão na obra um enriquecimento muito grande a partir do que
Palmeira nos oferece.
Concluindo
A
obscena necessidade do verbo é uma narrativa fluida, curta, que representa
efetivamente a figura da mulher e de sua intensa busca por voz ativa; também é
uma obra que serve de tributo a grandes escritoras como Clarice Lispector e
Hilda Hilst. Serve ao leitor mais introspectivo, que goste de uma prosa
intimista que reflete sobre questões existenciais e que consegue,
concomitantemente, expor limites de gêneros literários já consagrados pela
crítica.
Referências
BARBIERI, Márcia. “Um jorro de vida”. In:
PALMEIRA, Letícia. A obscena necessidade
do verbo. São Paulo: Penalux, 2016.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade.
Disponível em: < http://www.fecra.edu.br/admin/arquivos/Antonio_Candido_-_Literatura_e_Sociedade.pdf
> Acesso em: 30/01/17.
CORTÁZAR, Julio.Valise de Cronópio.
São Paulo: Perspectiva, 1974.
GENETTE,
Gérard. Discurso da Narrativa. 3ª ed. Lisboa: Veja, 1995 (coleção Veja
Universidade).
LISPECTOR, Clarice. Água viva. São Paulo:
Rocco, 1998.
PALMEIRA, Letícia. A obscena necessidade do verbo. São Paulo: Penalux, 2016.
POE,
Edgar Allan. A filosofia da composição. POE,
Edgar Allan:poemas e ensaios. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Globo, 1987 (p.77-88).
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