13/02/2017

Possíveis aproximações entre "Só, com peixes", de Adriane Garcia e "Watsu", de José Juva




A literatura permite uma série bastante diversificada de abordagens e estudos de seu conteúdo. Em uma dessas abordagens, é possível selecionar pequenas categorias diferentes daquelas ditas clássicas (tais como tempo, espaço, enredo, foco narrativo e personagem), e fazer uma análise comparativa entre os estilos dos artistas. Isto é exatamente o que propomos aqui: uma análise da água como aproximação de duas obras de poetas contemporâneos. Em Só, com peixes (Confraria do vento, 2015), a mineira Adriane Garcia traz um apanhado de poemas sobre o mar, sobre água e – claro – sobre os peixes. Já José Juva traz em Watsu (Cepe, 2016 – III Prêmio Pernambuco de Literatura) algo parecido a princípio. O que este artigo pretende é checar pontos ora de convergência, ora de dissonância entre os poetas, tomando como ponto de partida o eixo temático sobre o elemento referido.





ABSTRATO E CONCRETO NUM SÓ AQUÁRIO



Se pudéssemos declarar a presença de um sentimento que permeia boa parte dos poemas de Só, com peixes, poderíamos dizer, sem sombra de dúvida, que este seria a tristeza. A imagem da água é usada para trazer à mente do leitor uma imagem de desolação. Se é verdade então que o trágico é belo, tal nos dizia Aristóteles, então veremos muitas imagens de belezas construídas a partir da figura da água, como em “Enredada”: A vida não é nada/ que não/ a hora da rede/ de algum lugar/ líquido// Para-se emalhado/ e não importa se/ há espinhos/ opérculos/ ou se vais tomar/ o aspecto de uma criatura/ molusca// Um repuxo/ de violento mistério/ nos tira do mar (GARCIA, 2015, p 17). Vários poemas de Garcia mencionam a relação que temos com a água como algo inevitável e muitas vezes, fatal: Afogar-se/ é apagar-se/ apaziguar-se/ nas profundezas (GARCIA, 2015 p. 31 – grifo meu). Essa mesma sensação é evocada em alguns poemas de Watsu: não fazer coro/ ao riso e ao choro// deitado no barco:/observar a careta/ da anta, qualquer/ semblante: feito/ por nuvens,/ um desenho// uma tempestade/ agita o mar:/ paz no corpo e na alma:// o porco/ tem calma (JUVA, 2016, p.51 – grifo meu). Aproximando as duas obras, é possível perceber uma percepção de um estado de paz em um eu-lírico que se encontra à deriva, sem perspectiva alguma. Por outro lado, apesar da constante presença da água nas duas obras, a abordagem estilística é bastante distinta. Poderíamos dizer que Garcia é mais imagem enquanto Juva é mais ícone, algo mais visual. Explicando melhor: o leitor, ao observar os dois autores, verá que Garcia recorre mais a metáforas e alegorias sobre a própria água, sobre a vida marítima, ou seja, temos uma evocação abstrata, como em “Fronteiras”: Antigamente eu mudava/ de cor/ qual cavalo marinho// mas oceânica bebi/ a água doce da torneira// entrei no táxi filha pródiga/ e disse:/siga para a Atlântida//o homem me olhou/ como se olha uma refugiada. (Garcia, 2015, p.64). Juva trabalha a água de forma mais visual; a disposição da maior parte dos versos faz com que tenhamos a impressão de que eles “boiam” aleatoriamente sobre o papel:


coração de vidro

a chuva fica lá fora



não há chave de fenda

ou imã, coração de vidro



movimentos de baixo impacto

da hidroginástica, manhãs:



os cachorros da lua patrulham

as despedidas dos cedros



coração de vidro, malandro

que perambula pela floresta

de arrepios em seu escafandro

(JUVA, 2016, p.48)



Portanto, a partir dos exemplos acima, podemos ter uma ideia de como dois artistas contemporâneos podem ser ao mesmo tempo próximos a partir do eixo temático, mas com uma abordagem diversificada – o que acreditamos ser de grande valia ao leitor.



UMA DISSONÂNCIA IMPORTANTE


A partir de uma observação da temática da água nas duas obras, é possível, além da singularidade estilística já apontada, perceber uma dissonância mais sutil: como dissemos, é possível perceber certo “estado de paz” como culminância de muitos dos poemas de Watsu e Só, com peixes. Entretanto, diferente dos exemplos mostrados mais acima, outros poemas podem ser observados à luz do choque entre seus desfechos. Há ainda a imagem de paz, de silêncio e quietude, mas a predição sugerida é diferente: a paz representa uma condição para a finitude, para o descanso derradeiro. Talvez isso justifique a imagem da água e dos peixes sempre associada ao fatalismo contra o qual não podemos lutar, como em “Masacquista”: Teu anzol/me trespassou/ o palato mole/ e a alma// agora a crença/ de que só sei sofrer/ descarna-se, diário/ num anzol (GARCIA, 2015, p. 50). E se os desfechos de Garcia apontam para fim, Juva prefere a renovação, o recomeço, algo sugerido já desde o título da obra (a expressão Watsu sugere uma terapia de cura e relaxamento através da água).



AMANHECERES PARA DIAS LÍQUIDOS


A partir deste texto, pudemos conhecer um pouco da obra de dois poetas contemporâneos de maestria no que fazem. Ambos partem de temática parecida, conforme propusemos, e criam resultados interessantes, que me remetem ao que Cortázar costumava dizer sobre o conto, que o importante não era exatamente o tema, mas o tratamento que esse tema recebe das mãos do autor. Penso que, com os exemplos aqui exibidos, podemos ver razão no que o argentino afirma, sendo possível ainda expandir seu significado a outros gêneros, como a poesia aqui em questão. Convém lembrar, entretanto, que muitas das comparações apresentadas pretendem não atribuir juízo de valor estético entre os autores, mas mostrar como a qualidade deles apresenta resultados tão próximos e, paradoxalmente, tão distintos. Quem ganha com isso, sem sombra de dúvida, somo nós, leitores, que temos a oportunidade de beber na fonte e nos afogar nas poéticas contemporâneas.



Referências

GARCIA, Adriane. Só, com peixes. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015.

JUVA, José. Watsu. Recife: Cepe, 2016.

1 pitacos:

Obrigada, Shirukaya!
Grande abraço.

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