A
literatura permite uma série bastante diversificada de abordagens e estudos de
seu conteúdo. Em uma dessas abordagens, é possível selecionar pequenas
categorias diferentes daquelas ditas clássicas (tais como tempo, espaço,
enredo, foco narrativo e personagem), e fazer uma análise comparativa entre os
estilos dos artistas. Isto é exatamente o que propomos aqui: uma análise da água como aproximação de duas obras de
poetas contemporâneos. Em Só, com peixes (Confraria
do vento, 2015), a mineira Adriane Garcia traz um apanhado de poemas sobre o
mar, sobre água e – claro – sobre os peixes. Já José Juva traz em Watsu (Cepe, 2016 – III Prêmio
Pernambuco de Literatura) algo parecido a princípio. O que este artigo pretende
é checar pontos ora de convergência, ora de dissonância entre os poetas,
tomando como ponto de partida o eixo temático sobre o elemento referido.
ABSTRATO
E CONCRETO NUM SÓ AQUÁRIO
Se
pudéssemos declarar a presença de um sentimento que permeia boa parte dos
poemas de Só, com peixes, poderíamos
dizer, sem sombra de dúvida, que este seria a tristeza. A imagem da água é
usada para trazer à mente do leitor uma imagem de desolação. Se é verdade então
que o trágico é belo, tal nos dizia Aristóteles, então veremos muitas imagens
de belezas construídas a partir da figura da água, como em “Enredada”: A vida
não é nada/ que não/ a hora da rede/ de algum lugar/ líquido// Para-se
emalhado/ e não importa se/ há espinhos/ opérculos/ ou se vais tomar/ o aspecto
de uma criatura/ molusca// Um repuxo/ de violento mistério/ nos tira do mar
(GARCIA, 2015, p 17). Vários poemas de Garcia mencionam a relação que temos com
a água como algo inevitável e muitas vezes, fatal: Afogar-se/ é apagar-se/ apaziguar-se/ nas profundezas (GARCIA,
2015 p. 31 – grifo meu). Essa mesma sensação é evocada em alguns poemas de Watsu: não fazer coro/ ao riso e ao
choro// deitado no barco:/observar a careta/ da anta, qualquer/ semblante:
feito/ por nuvens,/ um desenho// uma tempestade/ agita o mar:/ paz no corpo e na alma:// o porco/ tem
calma (JUVA, 2016, p.51 – grifo meu). Aproximando as duas obras, é possível
perceber uma percepção de um estado de paz em um eu-lírico que se encontra à
deriva, sem perspectiva alguma. Por outro lado, apesar da constante presença da
água nas duas obras, a abordagem estilística é bastante distinta. Poderíamos
dizer que Garcia é mais imagem
enquanto Juva é mais ícone, algo mais
visual. Explicando melhor: o leitor, ao observar os dois autores, verá que
Garcia recorre mais a metáforas e alegorias sobre a própria água, sobre a vida
marítima, ou seja, temos uma evocação abstrata, como em “Fronteiras”:
Antigamente eu mudava/ de cor/ qual cavalo marinho// mas oceânica bebi/ a água
doce da torneira// entrei no táxi filha pródiga/ e disse:/siga para a
Atlântida//o homem me olhou/ como se olha uma refugiada. (Garcia, 2015, p.64).
Juva trabalha a água de forma mais visual; a disposição da maior parte dos
versos faz com que tenhamos a impressão de que eles “boiam” aleatoriamente
sobre o papel:
coração
de vidro
a chuva fica lá fora
não há chave de fenda
ou imã, coração de vidro
movimentos
de baixo impacto
da hidroginástica, manhãs:
os
cachorros da lua patrulham
as
despedidas dos cedros
coração
de vidro, malandro
que perambula pela floresta
de arrepios em seu escafandro
(JUVA,
2016, p.48)
Portanto,
a partir dos exemplos acima, podemos ter uma ideia de como dois artistas
contemporâneos podem ser ao mesmo tempo próximos a partir do eixo temático, mas
com uma abordagem diversificada – o que acreditamos ser de grande valia ao
leitor.
UMA
DISSONÂNCIA IMPORTANTE
A
partir de uma observação da temática da água nas duas obras, é possível, além
da singularidade estilística já apontada, perceber uma dissonância mais sutil:
como dissemos, é possível perceber certo “estado de paz” como culminância de muitos
dos poemas de Watsu e Só, com peixes. Entretanto, diferente
dos exemplos mostrados mais acima, outros poemas podem ser observados à luz do
choque entre seus desfechos. Há ainda a imagem de paz, de silêncio e quietude,
mas a predição sugerida é diferente: a paz representa uma condição para a finitude,
para o descanso derradeiro. Talvez isso justifique a imagem da água e dos
peixes sempre associada ao fatalismo contra o qual não podemos lutar, como em
“Masacquista”: Teu anzol/me trespassou/ o palato mole/ e a alma// agora a
crença/ de que só sei sofrer/ descarna-se, diário/ num anzol (GARCIA, 2015, p.
50). E se os desfechos de Garcia apontam para fim, Juva prefere a renovação, o
recomeço, algo sugerido já desde o título da obra (a expressão Watsu sugere uma terapia de cura e
relaxamento através da água).
AMANHECERES
PARA DIAS LÍQUIDOS
A
partir deste texto, pudemos conhecer um pouco da obra de dois poetas
contemporâneos de maestria no que fazem. Ambos partem de temática parecida,
conforme propusemos, e criam resultados interessantes, que me remetem ao que
Cortázar costumava dizer sobre o conto, que o importante não era exatamente o
tema, mas o tratamento que esse tema recebe das mãos do autor. Penso que, com
os exemplos aqui exibidos, podemos ver razão no que o argentino afirma, sendo
possível ainda expandir seu significado a outros gêneros, como a poesia aqui em
questão. Convém lembrar, entretanto, que muitas das comparações apresentadas
pretendem não atribuir juízo de valor estético entre os autores, mas mostrar
como a qualidade deles apresenta resultados tão próximos e, paradoxalmente, tão
distintos. Quem ganha com isso, sem sombra de dúvida, somo nós, leitores, que
temos a oportunidade de beber na fonte e nos afogar nas poéticas contemporâneas.
Referências
GARCIA, Adriane. Só, com peixes. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015.
JUVA, José. Watsu. Recife: Cepe, 2016.
1 pitacos:
Obrigada, Shirukaya!
Grande abraço.
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