Muitas pessoas em meu círculo de
amigos rasgaram os mais pomposos elogios à série inglesa Black Mirror, uma das
mais assistidas da atualidade. Como não sou lá tão aficionado por séries,
ignorei os comentários por um bom tempo. Entretanto, a quantidade e o conteúdo
de alguns deles começaram a me intrigar. Ouvi de colegas que eu sequer dormiria
se assistisse. Estaria eu ignorando um
novo clássico do horror? Ora, mas a série não é uma ficção cientifica? Pois
bem, o hype foi tão forte que acabou me obrigando a assistir.
De fato, Black Mirror é uma boa
série, mas não me parecia genial-espetacular-lacradora-de-tirar-o-sono como
pregavam. Posso até comentar boas
sacadas que vi em muitos de seus episódios ou também os vários problemas.
Entretanto, o foco desse texto tem mais a ver com parte da recepção que a série
teve a ponto ser de recomendada como assustadora. Afinal, que medo é esse que
foi visto por tanta gente assim? Estaria eu sofrendo da síndrome do diferentão?
Para nos orientar na nossa
reflexão, tomemos como base a ideia de que tememos aquilo que pode nos
representar uma ameaça, especialmente à integridade física. Outra definição
bastante famosa seria a lovcraftiana de que tememos aquilo que não conhecemos,
aquilo a que não podemos atribuir uma explicação lógica. Com base nisso, o que
a série nos apresenta que poderia ser visto como algo a temer? Tecnologia,
diriam muitos dos amigos. Sim, óbvio, tecnologia. Está sugerido desde o título
da série, que remete às telas de aparelhos eletrônicos que usamos e dos quais
vamos nos tornando cada vez mais dependentes. Sim, seria possível explicar esse
medo do espectador como o medo de se perceber cercado, talvez até dominado pela
tecnologia. Todavia, o medo seria válido? Não estaríamos temendo a coisa
errada?
Se partirmos do princípio do
significado do termo, tecnologia (vem do grego) pode ter com ideia central a de
criação. É possível então afirmar que
parte do temor causado pela série se deve ao seu tratamento frente a tecnologias
com as quais já estamos lidando (ranking de reputação nas redes sociais, por exemplo),
ou que, num futuro próximo, poderiam se tornar viáveis, como as lentes que
podem gravar o que você vê e reproduzir posteriormente em outros dispositivos.
A dependência de aparatos tecnológicos é amedrontadora à maior parte da
população por vários motivos. Poderíamos destacar aqui a cultura de que somos
autônomos, independentes. Daí o medo seria plausível, já que costumamos ter
sempre a impressão de que o mundo se move mais rapidamente do que nossa
capacidade de interpretação dele. O medo então seria não da tecnologia, mas de
ficar para trás, o que nos isolaria de nossos grupos sociais e acarretaria em
danos para o nosso bem-estar. Mesmo assim, cultuamos a ideia de que a
tecnologia é culpada por estes eventuais danos. Isso explicaria o medo que temos
ao assistir ao episódio “Odiados pela nação” (foto 2), em que assassinatos estão ligados
a hashtags de promoção do linchamento de figuras odiadas. Outra razão seriam
nossos princípios religiosos, que muitas vezes envolvem uma cultura de que os
males que assolam nossa sociedade são um forte indício de um fim para a
humanidade. Exagero? Lembremos que, há poucos anos, especulávamos a utilização
de chips que facilitassem a organização de dados pessoais e que, graças à
difusão de informações falsas, resultaram na crença de que o governo pretendia “instalaro chip da besta nas pessoas”, o que causou a manifestação de parte da população
que chegava a afirmar que a presidente seria o próprio demônio.
Uma vez compreendido o porquê do
temor, outra questão mais específica se faz presente: esse temor da tecnologia seria
justo? Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, o espelho é um símbolo que representa na maioria das culturas a
revelação da verdade, a alma, a essência do ser. Tal como a bruxa malvada em Branca de Neve, a verdade parece não ser
muito interessante quando vai contra a figura pública que criamos de nós mesmos.
Some então à simbologia do espelho a semântica proporcionada pelo signo negro (ausência de luz, representação de
um contexto maléfico, obscuro e que mal podemos compreender) e chegaremos a uma
acepção pouco enfatizada do que significa black mirror: aquela verdade que
gostaríamos de esconder por nos lembrar o que temos de pior, nossos medos,
preconceitos, pulsões hedonistas que nem sempre coadunam com os princípios
morais, éticos ou religiosos que pregamos frente a nossos círculos sociais. Com
base nessa proposição, acredito que fica mais fácil entender por que o público
em geral se assusta com a série. Além de desfazer a nossa ilusão de autonomia,
mostra que nós, como Narciso, não somos tão perfeitos assim. O black mirror é
tão poderoso que nos faz aceitar os mais esdrúxulos acontecimentos como
verdade, tal como os milhares de mitos da deep web, desconsiderando todas as
benesses e facilidades que ela eventualmente pode proporcionar (a possibilidade
de comunicação sem nenhuma censura por exemplo). Black
Mirror, a série, apresenta esse lado negro humano (muitas vezes tendendo ao
exagero, é verdade) e nós, como já de costume, precisamos de um bode expiatório
que nos possibilite viver sem perceber que o mal (num sentido mais comum da
palavra) não está necessariamente na tecnologia, mas em nós, no que fazemos com
ela.
Mediante o exposto, como acabar com
o medo do black mirror? Pergunta difícil, sem resposta. Mas estamos tentando
respondê-la. Tentamos quando vemos as facilidades que a tecnologia nos tem
proporcionado: carros elétricos, ferramentas de comunicação como as redes
sociais, informação e conhecimento cada vez mais acessíveis, realidades virtual
e aumentada, impressão 3D – a lista é infinita, pelo que vemos. Entretanto o
black mirror está aí e, como todo espelho que se preze, nos sugere que olhemos
nosso reflexo e reflitamos sobre como temos agido. As perguntas que posso
estender ao leitor seriam: esse reflexo é tão assustador assim para você?
Quando você se olha no espelho, o que você vê? A roupa de alferes, como
Jacobina em O espelho? Alguém que
bloqueia os perfis que te aparecem com visões de mundo diferentes da sua? De
ser o linchado? De ser o linchador? A pergunta do título deste ensaio tem menos
a ver com a série do que parece, não?
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