23/01/2017

Resenha: Ventre urbano (Letícia Palmeira Lizziane Azevedo - org.)




Conheço um pouco do contexto literário da Paraíba para afirmar sem medo de equívoco que ela, ao menos no que diz respeito à literatura, caminha muito longe de projetar as mulheres que se enveredam por essas áreas. Basta o leitor puxar à memória e verá que, do clássico José Lins do Rego aos contemporâneos Rinaldo de Fernandes, Arturo Gouveia e Roberto Menezes, os nomes das mulheres não costumam circular. Talvez tenha sido essa a motivação por trás de Ventre Urbano (Penalux, 2016), coletânea de narrativas curtas compostas de autoras contemporâneas paraibanas ou radicadas no estado organizada pelas escritoras Lizziane Azevedo e Letícia Palmeira. Comentaremos agora um pouco do resultado da coletânea.

            Evidente que em antologias os critérios de seleção dos autores são sempre controversos e tidos como injustos. Por causa disso, talvez alguns leitores estranhem o elenco de Ventre Urbano pela ausência de alguns nomes, como a conhecida Marília Arnaud e a premiada Renata Escarião, mas receberá em troca novos (e bons) nomes para acompanhar, tais como Mayara Vieira e Romarta Ferreira (ainda inéditas, ou seja, sem nenhuma publicação individual), somadas às estreantes no gênero, já conhecidas pela poesia, Anna Apolinário, Cyelle Carmem e Amanda Vital. Como cereja do bolo, Maria Valéria Rezende, premiada com o Jabuti de 2015, também dá as caras. O resultado que se têm é, como já enfatizado, bem comum: ausências sentidas, mas presenças que trarão boas surpresas.

            De um modo geral, a antologia se apresenta muito bem e cumpre sua premissa de dar visibilidade à produção literária das mulheres na paraíba. Saliento também que mesmo a capa é assinada por uma artista local, Luyse Costa, e dá uma impressão muito boa à obra. Entretanto, a coletânea se vende como feminista – a julgar pela introdução feita pela organizadora:


Eu preciso ser feminista para defender o que muitas mulheres, do passado que pouco sabemos, defenderam. Eu, que queria apenas fazer festa à literatura, me vejo na necessidade de dizer que, embora muitas mulheres ainda estejam vivendo na miséria e no silêncio, nós estamos aqui para que suas vozes sejam ouvidas (p.17).


            Contudo, parece não ter sido uma preocupação das autoras, já que isso não é tão presente assim nos textos (há algumas exceções, falaremos delas mais à frente). Talvez a presença de uma convidada mais engajada à luta e aos estudos de gênero (Débora Gil Pantaleão, por exemplo) engrandecesse esse propósito.

Essas primeiras observações não são o foco da minha resenha, deixo isso a alguém mais especializado em estudos feministas, citando aqui apenas para suscitar reflexões das mais diferentes aos leitores. O foco elegido aqui, sendo assim, será o conto em si, tentando deixar de lado dados biográficos e características das autoras (até porque muitas delas são minhas amigas pessoais, não seria interessante tomar isso como critério de valor).

            Como já afirmado, é natural que antologias oscilem em seus resultados, e com Ventre Urbano não é diferente. Há narrativas muito boas e interessantes e outras mais fraquinhas. Para não tornar essa resenha muito vaga, apresento uma breve análise de cada um dos contos, seguindo sua ordem de apresentação.




Pipoca doce, Amanda Vital

Relato memorialístico, um tanto sucinto e sensível, o que é bom para aqueles que creem na brevidade da narrativa curta. Entretanto, o conto em questão se apresenta breve demais, dando a impressão que autora perdeu o fôlego e não sabia como prosseguir, o que dá ao conto mais cara de poema. Até aprecio cruzamento entre gêneros, mas acredito que aqui precisaríamos de um pouco mais de ousadia para tanto. A invocação às deusas, algo bastante clichê no mundo da poesia, no início da narrativa também não me parece contribuir muito para o relato. O conto perde um grande tema (as memórias de infância da narradora) pelos problemas apontados.


Relicário, Anna Apolinário

Outro relato de memórias, desta vez com uma narradora que usa como gatilho para os devaneios um livro vermelho numa biblioteca. De tonalidade erótica, a linguagem atrapalha um pouco esse clima por ser um tanto tímida, formal, empolada. O conto ganharia mais força se buscasse representar a sordidez das memórias de desejo através da linguagem, o que deixaria a narração menos pudica. Um ponto forte é a tematização do corpo, tão comum na escrita feminina e feminista, o que pode enquadrar a narrativa nas exceções às críticas que fiz no início desta resenha.


Pássaro sem asas, Cyelle Carmem

Aqui temos a história de uma moça que recebe um telefonema e decide pegar a estrada retornando a seu lugar de origem. O relato aqui já é bem estruturado, peca apenas em ter um desfecho bastante previsível. 


Parapeito, Letícia Palmeira

Uso quase incessante de discurso indireto livre não parece ser do agrado da maior parte dos autores, talvez pela sua dificuldade de elaboração ou pelo estranhamento que pode causar a leitores mais incipientes. Entretanto, aqui temos um exemplo do domínio da técnica, bastante frequente nas outras obras da autora – técnica que faz um relato tão simples como o de uma garota que invade o apartamento de um rapaz para se atirar janela abaixo se tornar expressivo, pujante pelos cruzamentos de vozes e questionamentos que engrandecem a tensão e o tom um tanto lúdico do desfecho. 


Requiem aeternam, Lizziane Azevedo

Talvez o melhor conto da coletânea. Narrativa crua, sem excessos, casa perfeitamente com a temática escolhida que também é uma exceção ao que critiquei no início desta resenha. Aqui o viés feminista é bem mais flagrante, já que traz um retrato da violência doméstica, mais especificamente contra a mulher. O desfecho também traz à tona essa perspectiva pragmática e trágica da vida, tornando um conto bastante representante daquilo que podemos chamar de "literatura de denúncia". 


Valete de Copas, Maria Valéria Rezende

Uma narradora que se encanta com a figura de uma carta de baralho. Conto curto e direto, com um leve pezinho no fantástico, o que faz com que o leitor se divirta cruzando a linguagem denotativa e referencial com a alegórica. 


O armário da memória, Mayara Vieira

Outra vez um conto de memórias, mas aqui com uma abordagem mais pragmática. A estrutura clássica também agradará aos que preferem narrativas curtas à Poe e Quiroga. A narração é bastante sucinta e o final não desaponta.


Quimeras de Clarice, Mayara Almeida

Talvez o relato mais fraco da coletânea, estruturado em mini capítulos que deixam a narrativa longa e enfadonha. Espera-se que o leitor se atenha ao longo do conto, mas o desfecho frustra as expectativas por ser extremamente óbvio. 


O elevador, Mirtes Waleska

O mesmo desfecho do conto anterior aparece aqui, o que pode provar como esse tipo de final é um lugar comum. Entretanto, problemas que aparecem em alguns contos comentados não aparecem aqui: somos apresentados a uma narradora que relata seu encontro com uma moça num elevador de seu prédio. A temática mais apegada a questões de gênero também pode agradar a quem se interessa sobre o assunto. A linguagem também se apresenta direta, sucinta e não parece distante ou tímida ao tratar de questões afetivas. 


E agora?, Romarta Ferreira

Aqui temos a história de uma criança narrando as rusgas entre seu pai e seu avô, com linguagem lúdica e direta, que contribui para o bom desfecho. Com relação ao tema deve agradar pela rara escolha de crianças protagonistas na literatura adulta. 


Trocadilhos, Sammely Xavier

Um término de namoro. Apresenta-se até interessante graças à abordagem metalinguística do narrador, mas vai ser perdendo a um desfecho fraco. Também poderia ter um pouco mais de conflito para engrandecer o final.



A conclusão que tiro de Ventre Urbano é que temos aqui um bom catálogo de autoras, com propostas interessantes para o conhecimento dos leitores. Convém salientar o que digo sempre em minhas resenhas: as críticas aqui apresentadas não são um ataque a qualquer autora, tampouco significam que a autora é ruim, apenas denotam que, a meu ver, o texto não foi feliz e que nessa vez a autora errou a mão. A oscilação da coletânea talvez se justifique pela quantidade de autoras estreantes na narrativa curta, mas muitas delas já mostram certa afinidade com o gênero. Também há contos muito bons e que atestam a maturidade das autoras mais experientes e revelam novas promessas que dão seus primeiros passos. Recomendo a leitura a todos os que quiserem conhecer mais sobre boa parte da produção literária paraibana.








1 pitacos:

Li. E digo logo: você é corajoso e isso eu admiro. Não é qualquer um que ousa se expressar e se posicionar de forma sincera diante de um livro. Gostei da análise. Das leituras dos contos percebo sim opiniões do Leitor Wander, e não do crítico Wander. Vou compartilhar. Agradeço mais uma vez.

E a Débora ficou de fora porque não concordou com alguns detalhes que já haviam sido avaliados e aceitos pelas demais autoras.

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