Nos últimos dias uma polêmica teve grande repercussão: alunas de um colégio de Porto Alegre protestaram pelo uso de shortinhos no ambiente escolar. Como ficar se comunicando através de memes pelo facebook não parece ser algo prolífico, discutamos um pouco a reivindicação delas.
SHORTINHO DEVERIA SER PERMITIDO HÁ MUITO TEMPO
Ao ler a manchete sobre a manifestação, chamou-me a atenção uma primeira coisa: ela se deu no extremo sul do país, ou seja, um lugar de clima predominantemente frio. À primeira vista, o protesto sequer faria sentido. Mas só à primeira vista. O clima de nosso país é relativamente alto, chegando a sensações térmicas altamente desconfortáveis em algumas épocas do ano. A maior parte do tempo, vestimentas pesadas como são boa parte dos uniformes escolares são muito ruins. Como vocês devem saber, atuo também como professor, e na escola onde trabalho não raro questiono a diretoria sobre o porquê de, em pleno Nordeste, os alunos (e professores e demais funcionários) terem de ir obrigatoriamente de calça comprida ou saia abaixo do joelho (para moças evangélicas). Vez ou outra, é comum que, num ambiente desses, algum aluno desses passe mal pelo calor. De um modo geral, a direção desconversa, a discussão fica uma outra hora. Dado o clima de nosso país, sempre me pareceu bobagem impedir um aluno de ir com short, bermuda, saia ou blusas sem mangas. Caso o problema fosse a falta de um uniforme específico que facilitasse a identificação dos alunos, por que não confeccionar uniformes mais "flexíveis"? Da mesma forma que muitas escolas proporcionam jaquetas para o clima frio, não me pareceria absurdo oferecer shorts/ bermudas em épocas mais quentes.
Oh, wait! Esquecemos de algo muito importante para nossa discussão: apesar de o calor ser um bom argumento para a permissão do shortinho, não é exatamente essa a justificativa das alunas em questão. Há algo maior nesse debate.
DISCUTAMOS GÊNERO NAS ESCOLAS
Sejamos sinceros: muitas justificativas para a proibição de shortinhos são machistas. Certa vez, em reunião de pais, uma das pautas pedia que instruíssemos os pais a não permitir que suas filhas viessem com roupas ditas inadequadas à aula, pois, "os menininhos estão em fase de crescimento, hormônios em ebulição" e "não queremos que eles mexam com as nossas meninas"; É preferível à direção da escola pedir que as meninas se cubram do que instruir os meninos a respeitar o espaço das suas colegas. Trocando em miúdos (e presumindo que essa seja a realidade de boa parte de nossas escolas), continuamos difundindo aquilo que os estudos feministas definem como "cultura de estupro": a mulher não pode dar motivos para que seja molestada. quando isso acontece, ela é dita culpada e o homem apenas está seguindo seu instinto. Francamente: que somos atraídos por alguém é verdade, temos nossos instintos (ou pulsões, se preferir um termo mais freudiano). Entretanto, não nos resumimos a felinos ou qualquer outro animal. Podemos (e temos a obrigação) de raciocinar e refletir sobre o que é ético e/ou moral no contexto em que vivemos. Se isso não é verdade, então estaríamos ainda na barbárie. Sendo assim, dizer que o homem assedia a mulher "por instinto" é um argumento invalido.
A manifestação das alunas gaúchas é bastante pertinente por mostrar como somos toleráveis com tantos comportamentos diferentes quando vêm de homens, mas os rechaçamos se vistos em mulheres. Fica bem claro que se fossem os meninos que se manifestassem para usar bermudas ou shorts nas escolas, o argumento do calor de que falei mais acima estaria na boca de boa parte das pessoas, que lhes dariam apoio incondicional. Como se trata de meninas protestando, falamos que "estão protestando pelo direito à pouca vergonha" ou que "mesmo a educação do jeito que está, elas preferem protestar por causa da porra de um shortinho" (mesmo que esqueçamos dos protestos em ocupações de escolas em São Paulo e em Goiás). Isso mostra como uma manifestação por algo tão simples pode escancarar a todos os nossos preconceitos e nosso esforço na manutenção de um contexto desfavorável às mulheres.
Questões como essas poderiam ser evitadas se discutíssemos mais questões de gênero nas escolas. O grande problema é que a maior parte das pessoas (e isso inclui os professores e gestores) é incipiente no assunto, deixando essa tarefa a cargo de uns pouco entusiastas que ainda tenham boa fé de esclarecer o alunado. Por outro lado, boa parte dos leigos se informa de maneira altamente deturpada, acabando por acreditar que discutir gênero é o mesmo que "ensinar putaria nas escolas" (como se alguém precisasse ir à escola pra aprender putaria, né?). É importante falarmos sobre gênero para que cada um de nós reconheça suas diferenças e, através do respeito dessas diferenças possa ainda assim proporcionar um ambiente mais igualitário.
MOMENTO OPORTUNO PARA A DISCUSSÃO
A polêmica vem em boa hora. Discutir sobre uso de shorts, saias, blusas de alcinha, bermudas e camisetas regatas é importante. Também serve para uma roda de alunos e professores para testemunharmos suas vivências e entender quais são suas reivindicações. e quando elas têm a ver com questões de gênero, acredito ser muito cruel de nossa parte agir como aqueles prefeitos que protelam pagamentos. É impressionante ainda o número de evasão escolar por causa de uma escola que falha em seu papel de inclusão. Evidente que não falha só por isso (basta observarmos a superlotação e falta de estrutura), mas não podemos simplesmente empurrar com a barriga. Isso seria, em grande parte, falhar com sua função de professor. É comum que, ao fazer a chamada em sala de aula (leciono para crianças entre 10- 16 anos), alguém responda "Fulana não vem mais. Casou". Ora, e casar seria motivo para abandonar os estudos? "O namorado/marido não deixa ela vir mais não". Ou seja, o namorado/ marido sabe das coisas, sabe que a escola permite o assédio e perpetua o machismo que ele mesmo, do alto de seu cinismo, faz questão de difundir, alegando que não tem culpa, pois já foi criado assim e não tem como mudar. Se nós, professores e gestores, continuamos cegos a isso, podemos ter certeza que não entendemos muita coisa de pedagogia.
Nem de shortinho.
PS: estou ciente de que o colégio onde aconteceu a manifestação das alunas é privado e, por isso, pode muito bem recomendar o tipo de roupa que lhe aprouver. Entretanto, isso em nada fere a discussão, pois serve tanto para a revisão das normas de cada uma das instituições privadas como para as públicas.
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