Wander Shirukaya - Você lançou recentemente Febre de enxofre (Penalux, 2016), sua
estreia no romance. Sentiu muita dificuldade em comparação ao gênero conto
abordado em Arranhando Paredes (Bartlebee, 2014), seu livro anterior?
Bruno Ribeiro - A dificuldade
independe de gêneros. Eu prefiro escrever romances. No conto é possível
visualizar regras mais rígidas, ordem, estruturas firmes. Obviamente que dentro
dessa rigidez ainda é possível transgredir, veja Borges, mas no romance é
viável andar com o bicho sem coleira com mais facilidade. Eu escrevi a Febre de
Enxofre como um sonâmbulo. Por exemplo, alguns leitores sublinharam
trechos do livro em suas resenhas e eu me perguntava depois de lê-las: “Eu
realmente escrevi isso?”
Acredito que
escrever um conto como um sonâmbulo seja mais complicado.
Tem certo
automatismo surreal na Febre de Enxofre que permitiu com que ele fosse livre,
caótico, cheio de registros e tons distintos, algo que me agradou no resultado
final. Não sei se todo esse pandemônio seria possível em um conto, pois ele precisa
ser adestrado com maior regularidade, já o romance não. A força do conto está
no final, do romance está no todo. O percurso é mais importante do que a
chegada.
Na Febre de Enxofre,
parafraseando um trecho do romance, eu queria ser “um bicho que busca a luz no
centro da escuridão”. E para encontrar essa luz – uma busca eterna, pois não a
encontrei – se fez necessário travar uma jornada incerta, longa e conflituosa;
o tipo de jornada que se encaixa mais em um romance do que em um conto. E
quando estou escrevendo, prefiro os embates pesados, os campos de guerra mais
virulentos e exaustivos, a linguagem que permita diversas experimentações, e
por conta disso opto pelo romance.
Voltando à
dificuldade, não acho que escrever romances seja mais fácil do que
escrever contos, pois escrever é sempre um troço duríssimo e que modifica
totalmente o sujeito, seja ele escritor de conto, romance ou qualquer outro
gênero.
Wander - Febre de enxofre também aborda a
autoficção. Há algum receio seu em ser mal interpretado ao trabalhar com as
fronteiras entre o verídico e o fictício?
Bruno - Esse termo “mal
interpretado” não entra no meu processo de escrita. Quando decido abordar algum
tema ou escolher certo tipo de linguagem ou procedimento na construção de um
livro, penso na serventia deles na trama e no que quero passar. A
interpretação, boa ou ruim, é algo que foge da minha alçada e não me preocupo
com isso.
Eu precisava da
autoficção porque o livro nasceu de um trauma e foi um ponto de partida
obrigatório, não havia outra saída. A única forma de assumir as histórias que
vivenciei foi passando-a para os outros. Entretanto, a autoficção neste livro
está tão diluída que nem sei se é válido chamá-lo de um livro autoficcional. O
delírio é tão grande na febre que ele come qualquer resquício de realidade.
Febre de Enxofre é tudo, menos realista, ou qualquer sinônimo do real. É um
real dentro de uma quitinete em terremoto constante. O livro engana o leitor. É
um romance que mergulha em inúmeras formas e operações; imagino que a autoficção
é só uma peça de um quebra-cabeça gigante.
O escritor Ben
Lerner, autor de “Estação Atocha”, compartilha uma opinião interessante sobre a
autoficção:
“"Há muita
diferença entre um protagonista falando de si mesmo e um escritor que só fala
de si mesmo. Há uma grande diferença entre descrever a autoabsorção, tema
interessante e urgente, e simplesmente sucumbir a ela. E, claro, depende da
qualidade do escritor: Montaigne falando sobre si mesmo é diferente de Paris
Hilton falando sobre ela mesma.
Acho que certo grau
de autorrefêrencia será sempre útil na narrativa. Não estou comprometido com a
autoficção em geral. Apenas com o uso de material biográfico se sinto que me
ajuda a construir um livro convincente e urgente.”
Outro escritor que
me influenciou foi Michel Leiris e seu livro A Idade Viril. Termino a minha
resposta com um trecho decisivo deste livro:
“Escrever um livro
que representasse um ato foi, em suma, o objetivo que achei que devia buscar
quando escrevi A idade viril. Ato em relação a mim próprio, pois ao redigi-lo
eu pretendia elucidar, graças a essa formulação mesma, certas coisas ainda
obscuras para as quais a psicanálise, sem torná-las inteiramente claras, havia
despertado minha atenção quando a experimentei como paciente […] Ato, enfim, no
plano literário, consistindo em mostrar o avesso dos mapas, em fazer ver em
toda a sua nudez pouco excitante as realidades que formavam a trama mais ou
menos disfarçada, sob aparências que se queriam brilhantes, de meus outros
escritos. Tratava-se menos, aí, do que se convencionou chamar ‘literatura
engajada’, e sim de uma literatura na qual eu tentava me engajar por
inteiro.”
A urgência, o ato e
o risco deste "engajar por inteiro" me seguiram do começo
ao fim da Febre de Enxofre.
Wander - Como tem sido a repercussão do
livro?
Bruno - Boa. Melhor do que
imaginei. Quando estou escrevendo não penso em repercussão. Escrevo e ponto.
Mas devo dizer que o feedback que venho recebendo do livro está me deixando
contente. Ando recebendo ótimas e elucidadas leituras da febre. A Editora
Penalux está me dando um excelente suporte. É uma editora incrível. Já
conquistei várias resenhas e críticas, de autores, booktubers, curiosos,
críticos. Tá sendo falado em jornais, blogs, boca a boca, sites literários,
etc. Enfim, o livro está rodando e até agora só escutei coisas boas sobre ele.
Espero que continue assim.
Wander - Sei um pouco sobre o processo de
criação do romance que se deu como parte de seu mestrado em Escrita Criativa.
Esse ramo de especialização das letras ainda é visto com muita desconfiança de
um modo geral, até com certo preconceito. A que você acha que se deve essa
desconfiança e o que proporia para suavizar seus efeitos?
Bruno - Essa desconfiança
existe por causa da ignorância. Algumas pessoas que falam mal da Escrita
Criativa não sabem o que é a Escrita Criativa. “E tem como ensinar a
escrever? E tem como ensinar a ser criativo?” Infelizmente, as pessoas ainda
acham que ser criativo é um dom para poucos. Criatividade é labuta, exercício,
busca, falha, caça, suor, esforço, apropriação, conflito. Não tem nada a ver
com dom, pelo contrário. Em relação à literatura a coisa não muda. Muita gente
pensa que só alguns abençoados pela deusa do Lirismo & Poiesis podem fazer
literatura. É uma visão extremamente equivocada e pueril.
O ato da Escrita
Criativa sempre existiu, só não tinha um nome. Trocar textos, revisar, pedir
para alguém confiável ler e opinar, ler e opinar o texto de alguém,
estudar, decifrar e desossar outros autores, estudar uma obra a fundo,
escrever pra caralho, apagar, escrever mais, apagar, escrever, enfim, isso e
muito mais fazem parte do eixo da Escrita Criativa, e são coisas que sempre
existiram.
Afinal, para mim, escrever é como fazer um
churrasco. Não podemos chegar lá e simplesmente jogar a carne na grelha. É
preciso selecionar bem a carne. O corte. Utilizar corretamente o sal, pois
colocar sal na carne parece ser a coisa mais fácil do mundo, mas não é. A quantidade
de sal que se coloca nela pode definir se a carne vai prestar ou não. O sal é a
linguagem e os procedimentos, a carne é a trama, o núcleo duro, o que você quer
contar, e a grelha é a escrita, a ação, o fogo da palavra no papel. O excesso
de grelha pode queimar a carne. O excesso pode destruir a sua obra.
Barthes dizia que o
escritor talentoso é aquele que conhece os seus limites. Saiba até onde você
pode ir, conheça o seu sinal vermelho e o obedeça. O bom escritor é aquele que
sabe a hora de parar pra não deixar a carne queimar. O meu mestrado de
Escrita Criativa me ensinou isso e outras técnicas de churrasco.
Quanto a solucionar os problemas dos
preconceituosos da Escrita Criativa, a única coisa que pode ser feita para
suavizar isso é destruir a ignorância das pessoas pela raiz. Posso auxiliar
nisso indicando um excelente texto sobre o assunto, escrito pelo amigo Tiago
Germano: http://literatortura.com/2016/ 11/5-ideias-equivocadas-sobre- oficinas-literarias/
Enfim, fora essa
ignorância, eu vejo também que muitos autores criticam a Escrita Criativa por
pura canalhice ou para criarem um personagem de escritor badass-fodão que
aprendeu a escrever nas ruas, na sarjeta, na bosta. Nego que faz marketing de
escritor transgressor e força a barra até dizer chega. No caso dessa gente, só
consigo rir, pois até para ser retardado tem limite. Mas enfim, cada criança
brinca com o playground do seu gosto.
Wander - Outra área por onde você caminha é
a literatura de horror. Ouso dizer que o gênero não é tão bem
difundido no país, ao menos no que diz respeito aos escritores. Já sofreu algum
tipo de problema por escrever coisas desse tipo?
Bruno - Nunca sofri nada por
causa das minhas escolhas, pois eu banco todas elas. Sério, não é arrogância, é
só ter culhão pra bancar o que você faz. Obviamente que vender um romance como
a “ressignificação do vampirismo” é um risco. O mito do vampiro tornou-se
mercadoria literária da pior qualidade nos últimos anos, mas eu precisava dela.
Mesma coisa com a autoficção. Muitos podem dizer: “Um livro brasileiro
autoficcional com vampiros? Cruzes!”, mas eu precisava trabalhar com esses
temas e não podia fugir deles. O leitor que não quiser ler o meu livro por
causa disso, saiba que é um leitor que fico muito feliz de não ter. O terror
inicial desse livro mora em Fausto, de Goethe. O meu intuito a priori foi criar uma releitura dessa
obra. Com o passar das escritas, outras influências foram entrando, mas eu
nunca perdi o meu ponto de partida: Fausto. O horror entra também como a
metáfora de um amor destruído. É um livro de amor, perda, mas também um livro
sobre a origem da criação literária e poética. Para mim, é um livro “do
contra”. Eu geralmente gosto de ser contra todos, pode parecer infantil isso,
mas a minha literatura sempre parte da negação e do conflito. Para conceber
essa proposta, busquei um dos períodos que mais me influenciam e que visualizo
uma explosão criativa intensa: o século XIX. Dentro deste período, recortei o
romantismo e suas influências. Fui dos simbolistas até os decadentistas e
mergulhei em suas obras. Fui atrás de Mary Shelley e Bram Stoker, entrei no
grotesco até me perder, e o resultado foi a febre. Para alguns leitores, o
livro é de terror. Eu acho isso maravilhoso, pois é uma leitura que faz com que
eu avalie o romance de outra forma, já que eu nunca pensei nele como um
livro de terror, mas realmente é possível lê-lo neste registro. A magia dos
leitores reside nisso: ressignificar a obra.
Wander - Música também é algo frequente na
sua literatura. Como ela te influencia? Estariam os músicos em pé de igualdade
com suas influências literárias?
Bruno - Acredito que sim. A música sempre esteve
presente nos meus textos. Seja citando-as ou como referência direta. No caso da
Febre de Enxofre eu cito músicas e utilizo dos seus recursos na linguagem. Um
dos protagonistas, Manuel di Paula, é DJ. Aprofundei-me bastante no mundo da
música eletrônica experimental por causa dele. Até montei uma banda com o
escritor gaúcho Matheus Borges, chamada Creepypasta, por conta dessa minha
pesquisa.
Fora a música
eletrônica, o punk rock também me influenciou. Eu queria criar um ritmo no
romance que fizesse jus ao título. Uma febre demoníaca com parágrafos longos e
pouquíssimas pausas para respiração. A primeira coisa que veio na minha cabeça,
obviamente, foi o punk. Depois de muita reflexão, veio não só um álbum, mas um
clássico da insanidade: o álbum Fun House
da banda americana The Stooges. As faixas deste álbum foram gravadas ao vivo,
sequenciais, sem edições no processo e com nenhum ou poucos overdubs. A banda
era conhecida na época pelas performances apocalípticas nos shows ao vivo e por
isso Fun House foi gravado dessa
forma. Como conceber uma escritura “ao vivo” foi um dos meus questionamentos
enquanto escrevia. Uma literatura que pudesse alcançar um nível próximo da
escrita automática, mas que fosse sóbria e consciente dos seus atos. Um dilúvio
de raiva e potência literária e musical. Um Borges com pico na veia. Um
Saramago com crise de abstinência. Iggy Pop poeta. Etc.
Se eu consegui fazer
isso, só os leitores poderão dizer.
Wander - O quem vem de novidade por aí?
Bruno - No começo do ano
soltei na Amazon o meu romance Glitter, em ebook. O livro foi finalista do
Prêmio Sesc de Literatura 2016 e do Prêmo Kindle. Fora isso, vou participar de
várias antologias e estou organizando duas: uma com a editora argentina
Outsider e uma sobre o Horacio Quiroga. Em breve volto a ministrar os meus
cursos de Escrita Criativa e acho que até o final do segundo semestre sai um
quadrinho que roteirizei sobre o poeta Castro Alves, pela editora Patmus. Boas
coisas estão vindo por aí.
Wander - Deixe uma mensagem aos leitores do
blog.
Beijos e abraços no coração de todos.
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O meu blog é esse: https://brunoribeiroblog. wordpress.com/
Amém.