É tão estranho... Os bons sempre morrem antes; os que ficam rezam para o choro passar para outro quando morrerem, num ciclo de lágrimas. Iara seguia no mar negro de ondas enormes que conduzia a escuna à lápide. Por quê? O mar, tal qual esfinge, ou se decifra ou, tenha certeza, será devorado. E o que fazer?
Urbano contempla o mar, que em toda sua excelência, está feliz pelo dia da mãe, era dois de fevereiro. Que chatice! Desliga a TV. Volta para a tela do PC e organiza as planilhas, gigantescas redes pescando dados. Navega pelo mar de informações, cliques e afins. Barulho. Muito barulho. Cadê a mãe desse pirralho pra calar o danado? Ele vai aprender a não desrespeitar um pai ocupado, ah se vai! O filho não tinha pena do colesterol puro que era a vida de Urbano. Pai, me leva pra praia no fim de semana? Praia? Vai ver o que na praia, menino? Tudo pronto, filho falando sozinho e lá se vai Urbano para a agência.
E a tarde passa, no vai e vem do mar. Lucas o vê, dá um trago no cigarro, a namorada coladinha assiste o cinza da fumaça a fundir-se com o cinza do fim do dia nublado. Vamos? A maré hoje não tá pra peixe: tá pra nós, meu amor. Realmente, o mar esperava o vivaz golfinho e a melíflua sereia. Sinal da cruz feito, pranchas na mão, atiram-se ao maior prazer que podiam ter juntos: viver os tubos, floaters e 360ºs.
E o mar de lágrimas se segue. O pobre Juninho chora copiosamente. Tenho medo! Tenho medo! Calma. A mãe é só consolos. Ela jamais exibiria ao filho as unhas no sabugo de tanto roer. Eles apenas esperavam o doutor voltar do mar. Mar de concentração. Todo cuidado é pouco numa cirurgia deste porte, mas tudo bem. Urbano deu sorte. Como é que se tem sorte por precisar urgente de um transplante? Não era bem isso. Urbano teve a sorte de ter um novo coração à disposição justo no momento em que mais precisou. O médico tranquilamente cuida de tudo, altos prêmios no ramo dão mais ares para a conclusão de um ato tão delicado. Mas, vamos rezar. Tudo vai dar pé.
Iara, como toda boa patricinha, exibe-se num intenso mar de beleza afrodisíaca. Top less. Se pudesse fazia tudo less, só para que as retinas circunvizinhas melhor a desenhassem. Mas naquele dia algo de diferente acontece: ela vê o mar, e no mar avista a sua paixão, o surfe. Vou me dedicar e aprender de uma vez por todas. Assim vai ao encontro do mar, de encontro a Lucas. Segue-se a maré de gírias, beijos e declarações de amor à liberdade.
Tá vendo só? Juninho não se conforma com o que está acontecendo. Logo mais o pai, Dr. João Urbano, ia acabar tendo alguma complicação cardíaca por causa do sedentarismo que ostenta com orgulho. Tem de parar com isso, bem! Quem tem que parar de me encher é o seu filho! Não vê que tenho que terminar isso aqui para entregar mais tarde? A esposa entrega o pires com o hambúrguer e puxa o filho para a sala de estar. Juninho não tem culpa de nada, Urbano.
Começa a chover fino, Lucas adorava surfar nesse clima. O mar o leva, ninguém se separa do cortejo, pois o último adeus tem de ser cumprido. Um cortejo de grandes amigos; Lucas não tinha parentes próximos. Nenhum além da Iara, com quem se casava todo santo dia, a cada banho de mar, a cada beijo. Chora Iara, você perdeu um garoto de ouro. Perdeu a vida. Com tanta gente ruim pra morrer no mundo por que logo o mais precioso? O mais carinhoso? O mais meu?... O que que a vida fez da nossa vida? Como ir para o mar agora, se hoje Lucas é recebido pelo mar de sete palmos de profundidade?
- Pai, quando a gente vai pro Havaí?
- O seu pai tá pra vender a moto e fechar outros negócios aí, Juninho. Não se preocupa não que, no mais tardar nesse fim de ano a gente vai.
- Pai!
- Que foi, meu filho?
- Eu te amo.
O pai de Juninho sorri feliz de ver o mar de alegria do filho adolescente, juntos aprendendo a guiar a prancha. Vinha por aí um grande história para contar.
O mar pra mim é como um deus. Será que Deus é o mar? Por que o mar faz isso com a gente? Iara é um retrato da desolação. Sentada na praia, com a roupa surrada, cheia de areia, falando ao mar em línguas de fogo, como mulher de pescador a esperar a volta do barco. Catatônica, só os olhos reagiam, vertendo o choro que compõe o oceano, eterna saudade, pesada tristeza. O sol se põe, a lua também; o coração se espreme sangrando nas mãos.
Juninho se espalha em alegrias, sorrisos. Deu a louca no papai! Que deu nele para querer assim, sem mais nem menos, passar o fim de semana na praia? Nunca em seus trinta anos isso tinha ocorrido. O melhor mesmo já acontecia. Ao chegar o garoto vai ter com o mar, leva a mãe a tiracolo. Urbano apenas pára, senta, procurando algo que os olhos dos outros, tão triviais, não vêem. Nunca que tive vontade de vir aqui, hoje quero mergulhar, ser o melhor amigo do mar. Os olhos respondem ao brilho sorridente do sol do fim de tarde, vertendo um choro não de tristeza, mas de alegria. Bem vindo, Urbano, toma tua faixa de senhor do Atlântico! Toma teu gibão e teu chapéu de capitão, que hoje finalmente navegarás de verdade!
Não! Os poucos curiosos fazem um círculo na praia. Não! O salva-vidas, triste, vê que não conseguiu chegar a tempo. Não! Mas não foi esse surfista que inventou de pegar a crista daquelas ondas com o mar desse jeito? Não! Os curiosos comentam, tinha até alguns que conheciam o rapaz. Não! Não era aquele que vem sempre por aqui com a namorada, uma loirinha que também surfa? Iara, o nome dela. Não! Mil nãos se aproximam estridentes da multidão; Iara não se conforma com que vê, cai, beija o corpo do namorado, os mais sensíveis acodem-na, os demais fazem piadinhas indecifráveis de tão baixas...
- Como eu estou, doutor? – pergunta Urbano, ainda no leito parecendo barco amarrado na margem, cheio de fios.
- Deus é grande, Dr. Urbano. A operação foi um sucesso. Pode haver rejeição, mas acredito piamente que logo, logo o senhor vai poder retomar suas atividades. Parabéns!
O contador sorri, o porto seguro se fez. O Juninho pára de se sentir culpado. Traz uma pizza para comemorar!
Uns avós não sei de onde ligam para Iara. Querem saber do acontecido. Depois de muita explicação e choro, ela segue a vontade deles, mesmo sem saber se era da vontade do morto, mas achava que era provável que Lucas ficaria feliz. Ela então organiza a papelada, permitindo a doação dos órgãos dele. Vida longa, Lucas, onde quer que esteja.
Crise de aeroporto é foda! Urbano não gosta do que ouve do filho, reclama com serenidade e sinceridade. Mas não era o senhor quem sempre falava essas coisas? Urbano não é mais o mesmo de uns tempos para cá. Deixa de reclamação que assim que esse vôo sair gente vai pra o Havaí. Entre abraços no filhão e na esposa, ele cisma com alguém noutra fila, afogando-se em desolação. Mas... Por que tenho a forte impressão de já ter visto aquela loira antes? Cismada com o homem que a observava estranho, Iara põe os óculos escuros para cobrir o olhar e se vira para as outras filas do aeroporto, a pensar.
Urbano contempla o mar, que em toda sua excelência, está feliz pelo dia da mãe, era dois de fevereiro. Que chatice! Desliga a TV. Volta para a tela do PC e organiza as planilhas, gigantescas redes pescando dados. Navega pelo mar de informações, cliques e afins. Barulho. Muito barulho. Cadê a mãe desse pirralho pra calar o danado? Ele vai aprender a não desrespeitar um pai ocupado, ah se vai! O filho não tinha pena do colesterol puro que era a vida de Urbano. Pai, me leva pra praia no fim de semana? Praia? Vai ver o que na praia, menino? Tudo pronto, filho falando sozinho e lá se vai Urbano para a agência.
E a tarde passa, no vai e vem do mar. Lucas o vê, dá um trago no cigarro, a namorada coladinha assiste o cinza da fumaça a fundir-se com o cinza do fim do dia nublado. Vamos? A maré hoje não tá pra peixe: tá pra nós, meu amor. Realmente, o mar esperava o vivaz golfinho e a melíflua sereia. Sinal da cruz feito, pranchas na mão, atiram-se ao maior prazer que podiam ter juntos: viver os tubos, floaters e 360ºs.
E o mar de lágrimas se segue. O pobre Juninho chora copiosamente. Tenho medo! Tenho medo! Calma. A mãe é só consolos. Ela jamais exibiria ao filho as unhas no sabugo de tanto roer. Eles apenas esperavam o doutor voltar do mar. Mar de concentração. Todo cuidado é pouco numa cirurgia deste porte, mas tudo bem. Urbano deu sorte. Como é que se tem sorte por precisar urgente de um transplante? Não era bem isso. Urbano teve a sorte de ter um novo coração à disposição justo no momento em que mais precisou. O médico tranquilamente cuida de tudo, altos prêmios no ramo dão mais ares para a conclusão de um ato tão delicado. Mas, vamos rezar. Tudo vai dar pé.
Iara, como toda boa patricinha, exibe-se num intenso mar de beleza afrodisíaca. Top less. Se pudesse fazia tudo less, só para que as retinas circunvizinhas melhor a desenhassem. Mas naquele dia algo de diferente acontece: ela vê o mar, e no mar avista a sua paixão, o surfe. Vou me dedicar e aprender de uma vez por todas. Assim vai ao encontro do mar, de encontro a Lucas. Segue-se a maré de gírias, beijos e declarações de amor à liberdade.
Tá vendo só? Juninho não se conforma com o que está acontecendo. Logo mais o pai, Dr. João Urbano, ia acabar tendo alguma complicação cardíaca por causa do sedentarismo que ostenta com orgulho. Tem de parar com isso, bem! Quem tem que parar de me encher é o seu filho! Não vê que tenho que terminar isso aqui para entregar mais tarde? A esposa entrega o pires com o hambúrguer e puxa o filho para a sala de estar. Juninho não tem culpa de nada, Urbano.
Começa a chover fino, Lucas adorava surfar nesse clima. O mar o leva, ninguém se separa do cortejo, pois o último adeus tem de ser cumprido. Um cortejo de grandes amigos; Lucas não tinha parentes próximos. Nenhum além da Iara, com quem se casava todo santo dia, a cada banho de mar, a cada beijo. Chora Iara, você perdeu um garoto de ouro. Perdeu a vida. Com tanta gente ruim pra morrer no mundo por que logo o mais precioso? O mais carinhoso? O mais meu?... O que que a vida fez da nossa vida? Como ir para o mar agora, se hoje Lucas é recebido pelo mar de sete palmos de profundidade?
- Pai, quando a gente vai pro Havaí?
- O seu pai tá pra vender a moto e fechar outros negócios aí, Juninho. Não se preocupa não que, no mais tardar nesse fim de ano a gente vai.
- Pai!
- Que foi, meu filho?
- Eu te amo.
O pai de Juninho sorri feliz de ver o mar de alegria do filho adolescente, juntos aprendendo a guiar a prancha. Vinha por aí um grande história para contar.
O mar pra mim é como um deus. Será que Deus é o mar? Por que o mar faz isso com a gente? Iara é um retrato da desolação. Sentada na praia, com a roupa surrada, cheia de areia, falando ao mar em línguas de fogo, como mulher de pescador a esperar a volta do barco. Catatônica, só os olhos reagiam, vertendo o choro que compõe o oceano, eterna saudade, pesada tristeza. O sol se põe, a lua também; o coração se espreme sangrando nas mãos.
Juninho se espalha em alegrias, sorrisos. Deu a louca no papai! Que deu nele para querer assim, sem mais nem menos, passar o fim de semana na praia? Nunca em seus trinta anos isso tinha ocorrido. O melhor mesmo já acontecia. Ao chegar o garoto vai ter com o mar, leva a mãe a tiracolo. Urbano apenas pára, senta, procurando algo que os olhos dos outros, tão triviais, não vêem. Nunca que tive vontade de vir aqui, hoje quero mergulhar, ser o melhor amigo do mar. Os olhos respondem ao brilho sorridente do sol do fim de tarde, vertendo um choro não de tristeza, mas de alegria. Bem vindo, Urbano, toma tua faixa de senhor do Atlântico! Toma teu gibão e teu chapéu de capitão, que hoje finalmente navegarás de verdade!
Não! Os poucos curiosos fazem um círculo na praia. Não! O salva-vidas, triste, vê que não conseguiu chegar a tempo. Não! Mas não foi esse surfista que inventou de pegar a crista daquelas ondas com o mar desse jeito? Não! Os curiosos comentam, tinha até alguns que conheciam o rapaz. Não! Não era aquele que vem sempre por aqui com a namorada, uma loirinha que também surfa? Iara, o nome dela. Não! Mil nãos se aproximam estridentes da multidão; Iara não se conforma com que vê, cai, beija o corpo do namorado, os mais sensíveis acodem-na, os demais fazem piadinhas indecifráveis de tão baixas...
- Como eu estou, doutor? – pergunta Urbano, ainda no leito parecendo barco amarrado na margem, cheio de fios.
- Deus é grande, Dr. Urbano. A operação foi um sucesso. Pode haver rejeição, mas acredito piamente que logo, logo o senhor vai poder retomar suas atividades. Parabéns!
O contador sorri, o porto seguro se fez. O Juninho pára de se sentir culpado. Traz uma pizza para comemorar!
Uns avós não sei de onde ligam para Iara. Querem saber do acontecido. Depois de muita explicação e choro, ela segue a vontade deles, mesmo sem saber se era da vontade do morto, mas achava que era provável que Lucas ficaria feliz. Ela então organiza a papelada, permitindo a doação dos órgãos dele. Vida longa, Lucas, onde quer que esteja.
Crise de aeroporto é foda! Urbano não gosta do que ouve do filho, reclama com serenidade e sinceridade. Mas não era o senhor quem sempre falava essas coisas? Urbano não é mais o mesmo de uns tempos para cá. Deixa de reclamação que assim que esse vôo sair gente vai pra o Havaí. Entre abraços no filhão e na esposa, ele cisma com alguém noutra fila, afogando-se em desolação. Mas... Por que tenho a forte impressão de já ter visto aquela loira antes? Cismada com o homem que a observava estranho, Iara põe os óculos escuros para cobrir o olhar e se vira para as outras filas do aeroporto, a pensar.
[Wander Shirukaya]
Foto: http://www.gocaptiva.com/gulfside-images-4-05/Couple%20on%20the%20beach1.jpg
4 pitacos:
"Os bons morrem jovens", já dizia o poeta Renato Russo.
Toda a ligação do conto com o mar, a vida em si e a sensação de estar nela e VIVO, que é o mais importante!
Vou esperar a continuação, quando postar, avisa lá na comunidade.
ótimo conto. Intrigante. Esperando pela continuação.
Este conto estava dividido em duas partes. Por motivos de força maior, acabei juntando-as.
Desculpe se incomodou alguém. ;P
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